14/02/10

Narcissus

 


«Bem entendido, o verdadeiro amor é excepcional, dois ou três em cada século, mais ou menos. O resto do tempo, há a vaidade ou o tédio. Quanto a mim, em todo o caso, eu não era a religiosa portuguesa. Não tenho o coração seco, loge disso, mas pelo contrário, cheio de ternura, e, mais, estou sempre de lágrima ao canto do olho. Só que os meus impulsos sentimentais se dirigem sempre a mim e os meus enternecimentos a mim é que dizem respeito. É falso, no fim de contas, que eu nunca tenha amado.
Conto na minha vida um grande amor, de que fui sempre o objecto.» 

[Albert Camus, «A Queda», Editora Livros do Brasil, p.46]

Soneto amoroso definiendo el amor

  



    Es hielo abrasador, es fuego helado, 
es herida que duele y no se siente,
es un soñado bien, un mal presente,
es un breve descanso muy cansado;
   es un descuido que nos da cuidado,
un cobarde, con nombre de valiente,
un andar solitario entre la gente,
un amar solamente ser amado;
   es una libertad encarcelada,
que dura hasta el postrero parasismo;
enfermedad que crece si es curada.
   Éste es el niño Amor, éste es su abismo.
!Mirad cuál amistad tendrá com nada
el que en todo es contrario de sí mismo!

[ Francisco Quevedo, «Antologia Poética», selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio e Alvim, p.168]

11/02/10

Nun Komm der Heiden Heiland

Credo Poético

Pensa o sentimento, sente o pensamento;
que teus cantos façam ninho sobre a terra,
e quando, em voo, um dia ao céu se ergam
nas nuvens não se percam.

Precisam de sentir peso nas asas,
pois a coluna de fumo se dispersa;
algo que não é a música é a poesia;
só fica a que se pensa.

O pensado, não o duvides, é o sentido.
Sentimento puro? Quem nele creia
da fonte do sentir nunca atingiu
a veia mais secreta.

Não cuides em excesso da roupagem,
não de alfaiate, é de escultor tua tarefa,
não te esqueças que nunca mais formosa
que nua está a ideia.

Não o que a alma encarna em carne, lembra-te,
não o que forma dá à ideia, é o poeta,
mas o que encontra a alma sob a carne,
sob a forma encontra a ideia.

É o detrito das fórmulas que faz
que nos vele a verdade, rude, a ciência;
despe-a com tuas mãos e os teus olhos
terão sua beleza.

Busca as linhas de um nu, que embora trates
de envolver-nos no vago de uma névoa,
mesmo a névoa tem linhas e esculpe-se;
abre os olhos, não as percas.

Que os teus cantos sejam cantos esculpidos,
âncora na terra enquanto eles se elevam,
a linguagem é sobretudo pensamento,
pensada é a sua beleza.

Em verdades do espírito prendamos
as entranhas das formas passageiras,
que a Ideia reine em tudo, soberana;
esculpamos, pois, a névoa.

[Miguel de Unamuno, «Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea», selecção e tradução de José Bento, Assírio e Alvim, p.40-41
Nasceu em 1864 em Bilbau; aí estudou até em Madrid frequentar a Faculdade de Filosofia e Letras, onde se licenciou e doutorou, após o que regressou à cidade natal, onde exerceu o professorado e colaborou na imprensa. Desde 1891, fixou-se em Salamanca de cuja universidade foi professor e depois reitor, até, em 1914, ser demitido deste cargo, sem qualquer explicação, devido à sua incómoda posição política e religiosa. Aí continuou como professor até, em 1924, pela sua oposição à ditadura do general Primo de Rivera, ser demitido e desterrado para a ilha de Fuerteventura. Daqui fugiu no ano seguinte e fixou-se em França até 1930, apesar de , em 1925, ter beneficiado de uma amnistia que permitiria o seu regresso a Espanha. Em 1931 foi reeleito reitor da Universidade de Salamanca. Faleceu em 1936, chegando ainda a intervir na vida pública espanhola nos primeiros meses da Guerra Civil. Unamuno conheceu e amou profundamente a terra e a cultura portuguesas. Foi amigo de Junqueiro, Pascoaes, Manuel Laranjeira e Eugénio de Castro. Durante a sua vida, raros viram nele o grande poeta, admirando-o sobretudo como filósofo, ficcionista, cidadão corajoso e exemplar nas suas palavras e atitudes. Mas Unamuno foi, acima de tudo, um grande poeta, em busca de si próprio, «do sentimento trágico da existência», da 'sua' Espanha 'que lhe doía'.]

10/02/10

Pensamentos

É próprio do ser humano o amar até os seus ofensores. Chegarás a isso, se tiveres em mente: que são teus parentes; que caem em falta por ignorância, e não por vontade; que dentro de pouco estareis todos mortos, tu e eles; e acima de tudo, que te não fizeram realmente mal, pois que não tornaram a tua alma pior do que era anteriormente.
(VII, 22)

Deixa a falta a quem fez a falta.
(VII, 29)

[Marco Aurélio, Pensamentos, selecção, tradução e prefácios de António Sérgio, edições Ática/Lisboa, p.65-66]

09/02/10

Eu consisto, eu consisto.

«Então de súbito se acalmara. Nunca, até então, tivera a sensação de calma absoluta. Estava sentindo agora uma clareza tão grande que a anulava como pessoa actual e comum: era uma lucidez vazia, assim como um cálculo matemático perfeito do qual não se precisasse. Estava vendo claramente o vazio. E nem sequer entendia aquilo que parte dela entendia. Que faria dessa lucidez? Sabia também que aquela sua clareza podia se tornar o inferno humano. Pois sabia que - em termos da nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade - essa clareza de realidade era um risco: «Apagai pois a minha flama, Deus, porque ela não me serve para os dias. Ajudai-me de novo a consistir de um modo mais possível. Eu consisto, eu consisto.»

[Clarice Lispector, «Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres», Relógio de Água Editores, p.105]

04/02/10

Apodrecer

Apodrecer é simples: basta
ceder do coração apenas
a parte mais sombria.

Guardar o resto para inúteis
coisas que não acontecem.


respigado aqui

A simpatia


«Nunca teve uma súbita necessidade de simpatia, de auxílio, de amizade? Sim, com certeza. Eu aprendi a contentar-me com a simpatia. Encontra-se mais facilmente e, depois, não nos impõe nenhum compromisso. "Creia na minha simpatia", no discurso interior, precede imediatamente "e agora ocupemo-nos de outra coisa". É um sentimento de presidente do Conselho: obtém-se muito barato depois das catástrofes. A amizade é menos simples. A sua aquisição é longa e difícil, mas, quando se obtém, já não há meio de nos desembaraçarmos dela, temos de lhe fazer frente.» 
 
[Albert Camus, «A Queda», Editora Livros do Brasil, p.27]

02/02/10

Erbarme dich, mein Gott