26/06/11
25/06/11
Como a alma se faz água
Existes? não existes? imagino
como a alma se faz água
e o coração maravilha
quando na sombra da tarde
me atravessas pela vida.
Alberto Soares, Equilíbrio, Caminho da poesia, p.81
Jorge de Sena
Jorge de Sena foi um escritor, um ensaísta e um poeta português. Grande. Morreu no estrangeiro e o regime celebrou-se com as suas ossadas. Sena era do tempo em que os intelectuais se enojavam com o ambiente irrespirável do país. Agora os intelectuais não só não se enojam como apoiam ambientes irrespiráveis. Não tenho bem a certeza é que sejam intelectuais. Duvido, porém, que, se fosse vivo, Sena apreciasse o fútil exercício. O seu justíssimo orgulho amargo não se daria bem com piedades póstumas. Eduardo Lourenço falou, certeiro, do «regresso do indesejado». Anos a fio, no antigo como no novo regime (...) trataram-no sempre como um intruso, como um estranho ao cânone oficial e ao «amiguismo» circular. Quando olho para aquilo a que apelidam de «literatura portuguesa» - uma categoria pífia onde cabe tudo, desde o romance encomendado a jornalistas da moda, a meninos e meninas dados a tremuras cerebrais lá onde nem existe uma cabeça - percebo melhor por que é que um homem da dimensão de Sena teve de ir embora daqui para ser Jorge de Sena. Porque aqui matam as pessoas em vida para, depois de mortas, as exibirem como troféus nacionais. Sena acompanhou a minha adolescência e a minha juventude. Como ensaísta, como camonista, como poeta, como romancista, como contista. Em suma, como um Homem. A melhor homenagem que se deve fazer a seres raros como Sena é lê-los e deixá-los entregues à luminosa eternidade a que pertencem.
João Gonçalves, Contra a Literatice e Afins, Guerra e Paz, p. 50-51
20/06/11
Minha mãe
Minha mãe zangava-se muito. Entrava em casa quando vinha de fora, da quinta ou da sapataria, e a casa cobria-se de culpas, toda gente era incluída.
Não sei que humor devastador a tomava. Ou sei, agora que sinto o mesmo, uma espécie de desabrido desgosto de retomar um reino que se herdou e não o queríamos. Estou a parecer-me com a minha mãe, finalmente encontramo-nos depois de tantos anos de frieza meio arrependida. Eu acusava-a de ser tão adaptada e falar por provérbios que permitem alguma segurança de opinião. Eu fazia os meus provérbios, era sempre irascível na maneira de proibir qualquer adulação. Cuidado em ter amor por mim! O amor parecia-me enfadonho quando oferecido; tinha de ser difícil e não carinhoso e leviano. "Amor de menino é como água em cestinho" - o mundo parecia-me povoado de crianças, dessas que morrem cedo e têm no peito um vazio.
Agustina Bessa-Luís, O livro de Agustina Bessa-Luís, Guerra e Paz,p. 80-81
05/06/11
Quadros [1]
A Vocação de S. Mateus é mais uma interpelação que uma designação imperativa. Cristo encontra nele um dos seus apóstolos; mas o interpelado, perplexo, não sabe bem se o apelo lhe é dirigido. À mesa em que se senta com outros publicanos, Levi, que será Mateus, ainda não sabe quem será, e os outros nem sequer parecem saber quem é Jesus. Caravaggio não quis mostrar a cena de um reconhecimento, mas o primeiro momento de um encontro; e isso, lido na filigrana da muito apertada ortodoxia do tempo, seria heresia, porque recusa a representação da predestinação e da graça divinas, categorias cuja pertinência iria ocupar boa parte das polémicas teológicas de meados do século XVII.
Como todos os figurantes se vestem com roupas contemporâneas, a cena perde vigor histórico para ganhar um inesperado dinamismo plástico. Em boa verdade, a única coisa que interessa a Caravaggio é que a sua pintura funcione e que o jogo dos corpos e das expressões se equilibre na complexa arquitectura das sete personagens que figuram na enorme tela. Porque, na até então curta obra de Caravaggio, essa era uma dupla 'première': por um lado, as duas telas eram de longe os maiores formatos a que se abalançara; por outro, porque o máximo que arriscara pintar, até então, eram três personagens, precisamente no célebre quadro [Os batoteiros] que abrira os olhos do cardeal Del Monte para o seu talento.
Alguns julgam ver na figura em primeiro plano (possivelmente, o apóstolo Pedro), uma forma hábil de Caravaggio fugir à representação de Jesus com vestes contemporâneas, o que lhe podia valer problemas com as autoridades eclesiásticas. É possível. Mas Pedro, que quase oculta Cristo, é uma adição tardia, sabe-se hoje. Basta olhar para o quadro como facto de pintura: a figura de Pedro cumpre a função de «compensar» a presença avassaladora de Cristo, irrompendo do lado direito da cena, precisamente de onde vem a luz. Sem essa figura circunstancial, que intercepta o braço de Jesus, deixando apenas ver o gesto adâmico pelo qual designa Mateus, a tela seria a representação de um episódio da vida de Cristo e não o momento em que Mateus é designado pelo destino. Ou seja, sem Pedro, não haveria interpelação, surpresa e dúvida, apenas imperativo e reconhecimento.
António Mega Ferreira, Roma - Exercícios de reconhecimento, Sextante Editora, p. 81-82
28/05/11
O primeiro
Relembro-nos ocultos sob a pérgula de glicínias.
A luz pingava suspensa em cachos de lilás.
Sentíamo-nos submersos num líquido turquesa
onde os gestos morosos subaquáticos pareciam
brancos e nus.
A aproximação dos lábios
teve a lentidão dos moluscos marinhos.
O teu braço cingiu-me a nuca,
as minhas mãos perderam-se no infinito
e o mundo parou assim...
Só há um beijo válido: o primeiro.
É puro, de mármore, eterno.
Merece uma estátua no meio do jardim.
Paulo Assim, Celulose, Lugar da palavra, p.19
26/05/11
Depois da noite
Olhos de maio rios muito claros
trazendo soltos seixos de um cinzento
que em breve se mistura de silêncio
brando. É tarde pra movê-los
do meu rosto ao teu que trouxe dedos
desprendê-lo da minha boca ébria
que a dizer-te se liberta a pouco e pouco
esta alegria. Fosse haver
depois da noite um dia sucessivo
não feito mais do que se permitir
ser tudo para nós e não mover-se
nunca o sentimento de deixar-te
sendo completo porque não termina
todo o amor que fica por fazer.
Alberto Soares, Escrito para a noite, INCM, p.44
23/05/11
22/05/11
Condição de mulher
Recordava como, no tempo em que era homem, exigia das mulheres que fossem obedientes, castas, perfumadas e primorosamente ataviadas. «Agora vou ter que pagar na minha própria carne esses desejos», reflectiu; «porque as mulheres não são ( a ajuizar pela minha breve experiência de pertença ao sexo) obedientes, castas, perfumadas e primorosamente ataviadas por natureza. Só podem alcançar essas graças, sem as quais não gozam nenhum dos prazeres da vida, mediante a mais enfadonha disciplina. Há o penteado», pensou, «que só por si me vai roubar cada manhã uma hora; há o ver-se ao espelho, mais uma hora; há o espartilho e as rendas; o banho e o pó-de -arroz; há o mudar de vestido, trocando o cetim pela renda e a renda pela seda; há o ser casta todos os dias do ano...». Aqui bateu o pé com impaciência, exibindo uma ou duas polegadas da perna. Um marinheiro empoleirado no mastro, que por acaso olhou para baixo neste instante, sobressaltou-se tão violentamente que perdeu o pé e só por um triz se salvou. «Se ver os meus tornozelos pode custar a vida a uma honesta criatura que com certeza tem mulher e filhos para sustentar, manda a mais elementar humanidade que os traga sempre cobertos», pensou Orlando. As pernas eram, porém, um dos seus maiores encantos. E pôs-se a pensar na bizarra situação a que se chegou quando a mulher é obrigada a cobrir os seus encantos para que um marinheiro se não despenhe do topo de um mastro. «Que os leve a peste!», disse, dando-se conta, pela primeira vez, daquilo que noutras circunstâncias teria aprendido desde criança, ou seja, das sacrossantas responsabilidades da condição de mulher.
Virginia Woolf, Orlando - uma biografia, Relógio d'Água Editores, p.111-112; imagem: Dino Valls, Catexis
Virginia Woolf, Orlando - uma biografia, Relógio d'Água Editores, p.111-112; imagem: Dino Valls, Catexis
21/05/11
O cinismo
O cinismo é a arte de ver as coisas como elas são,
de preferência a como deveriam ser.
Oscar Wilde, Aforismos, Contexto, p.79
15/05/11
E tocará esse piano
Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.
Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.
Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.
Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.
E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.
Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.
Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.
Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.
E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.
Juan Ramón Jimenez, Antologia Poética, trad. José Bento,
Relógio D'Água, p.31-32
Relógio D'Água, p.31-32
09/05/11
Escrito no muro
Procura a maravilha.
Onde a luz coalha
e cessa o exílio.
Nos ombros, no dorso,
nos flancos suados.
Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.
Ou a sombra espessa.
Na laranja aberta
à língua do vento.
No brilho redondo
e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada
de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.
Onde a luz coalha
e cessa o exílio.
Nos ombros, no dorso,
nos flancos suados.
Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.
Ou a sombra espessa.
Na laranja aberta
à língua do vento.
No brilho redondo
e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada
de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.
Eugénio de Andrade, Obscuro Domínio, Limiar, p.16-17
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