28/01/10

Encontro com Ezra Pound

deves ir uma tarde de domingo,
quando Veneza morre um pouco menos,
apesar das crianças solitárias,
do róseo doentio das paredes,
dos jardins ácidos de sombras,
vai procurá-lo embora não te fale
(esquecerás que por trás de ti o mar afunda
as ilhas, as igrejas, os palácios,
as mais belas cúpulas da terra,
que não te encante o mar nem as sereias)
recorda: Fondamenta Cabalá,
há por ali um vidreiro de Murano
e um bar com música suave,
pergunta na pensão chamada Cici
onde habita aquele homem que chegou
só para ver as pessoas a Veneza,
aquele americano um pouco louco,
ainda direito e com a barba nevada.
passa a ponte de pedra, verás charcos
cheios de gatos negros e gaivotas,
ali, junto ao canal de águas muito verdes
cheios de flores de laranjeira e fruta podre,
ouvirás os violinos de Vivaldi,
pára e não digas nada enquanto olhas:
Ramo Corte Querina, esse é o nome,
nessa pequena viela com os seus vasos,
sem outra saída que a da morte,
vive Ezra Pound

Nasceu em La Bañeza (Leão) em 1946. Cursou estudos de Engenharia e História na Universidade de Madrid. Foi leitor de espanhol nas universidades de Milão e Bérgamo. Publicou critica literária em jornais e revistas, volumes de traduções de Pasolini. E. Sanguinetti e Leopardi (este com um amplo estudo), 'Conocer a Aleixandrey e su obra' e antologia 'Poetas italianos contemporáneos'.]

26/01/10

Absinto



Francis Ford Coppola, «Dracula», 1992

Agosto, o mês em que as crianças mais crescem

«No pátio, as crianças brincavam no meio do passado remoto dos séculos. A cidade era velhíssima, escavada, atulhada de grutas e esconderijos. Nas tardes de Verão, quando os habitantes estavam de férias ou desapareciam por detrás das persianas, eu ia para um segundo pátio onde estava a boca de uma cisterna tapada por tábuas de madeira. Sentava-me em cima delas para ouvir os ruídos. Do fundo, sabe-se lá quão profundo, provinha um sussurro de água em movimento. Havia uma vida encerrada lá dentro, um prisioneiro, um papão, um peixe. Por entre as tábuas subia o ar fresco que enxugava o suor. Na infância, tinha uma liberdade especial. As crianças são exploradoras e querem conhecer os segredos. Regressei, por isso, às traseiras da estátua para ver onde levava o alçapão. Era Agosto, o mês em que as crianças mais crescem.»

[Erri de Luca, «O dia antes da felicidade», Bertrand Editora, p.10-11]

25/01/10

Serventês moral

Vej' eu as gentes andar revolvendo
e mudando aginh' os corações
do que põen antre si as nações;
e já m' eu aquesto vou aprendendo
e ora cedo mais aprenderei:
a quen poser preito, mentir-lho-ei,
e assi irei melhor guarecendo.


Ca vej' eu ir melhor ao mentireiro
qu' ao que diz verdade ao seu amigo;
e por aquesto o jur'  e o digo,
que já mais nunca seja verdadeiro,
mais mentirei e firmarei log'al:
a quen quero [i] ben, querrei-lhe mal,
e assi guarrei como cavaleiro.


Pois que meu prez nem mia onra non crece,
porque me quigi teer à verdade,
vede-lo que farei, par car[i]dade,
pois que vej' o o que m'  assi acaece,
mentirei ao amigo e ao senhor,
e poiará meu prez e meu valor
com mentira, pois con verdade dece.

PERO MAFALDO
(CA 435; CNB 316)

aginh': aginha, asinha, depressa.
nações: grupos sociais.
aquesto: isto.
poser preito: fizer juramento.
guarecendo: prosperando.
mentireiro: mentiroso.
firmarei: afirmarei.


[ Poesia e Prosa medievais, selecção, introdução e notas por Maria Ema Tarracha Ferreira, Editora Ulisseia, p.101-102]

Versos de frio

«Deixei que viesses
e para mim tangesses
a aliciante lira
da tua mentira.

Deixei que viesses
e que me prendesses
nos laços doirados
dos nossos pecados.

Deixei que viesses,
não por que te amasse.
Foi para que morresses
e eu não te chorasse.»


[Maria Ondina Braga, «A Rosa-de Jericó, contos escolhidos», Caminho, p.13]

21/01/10

Song of sand

Outro dia

Leio cinco versos.
Já os tinha lido, depressa,
a apanhar-lhes o espírito,
no ar.

Que versos!
Mal os entendi,
não os apreciei...

Leio-os agora mais devagar,
palavra a palavra...
Cada palavra,
ou duas,
ou três...
Sim, é isto...

Assim se pensa,
efectivamente,
depressa ou devagar,
por meios sentidos...
Cada palavra é um título,
E larga!
Tanto vale sendo verbo
como adjectivo...
E não há adjectivos banais,
nem de mau gosto,
há pensamentos...
coisas visíveis
ou invisíveis,
mostradas de repente.

Mas escapadiças...
É sempre preciso
um esforço novo,
inteligência
e sensibilidade
para as compreender...
'saisir!'


[Irene Lisboa, «um dia e outro dia... outono havias de vir», volume I, poesias I, Presença, p.272-273]

P.S.: Para AJS, com gratidão.

Trabalhos

«Neste mundo, tudo tem a sua hora; cada coisa tem o seu tempo próprio.
Há o tempo de nascer e o tempo de morrer;
o tempo de plantar e o tempo de arrancar;
o tempo de matar e o tempo de curar;
o tempo de destruir e o tempo de construir;
o tempo de chorar e o tempo de rir;
o tempo de estar de luto e o tempo de dançar;
o tempo de atirar pedras e o tempo de as juntar;
o tempo de se abraçar e o tempo de se afastar;
o tempo de procurar e o tempo de perder;
o tempo de guardar e o tempo de deitar fora;
o tempo de rasgar e o tempo de coser;
o tempo de calar e o tempo de falar;
o tempo de amar e o tempo de odiar;
o tempo da guerra e o tempo da paz.

Que resultado tira cada um dos seus próprios trabalhos e canseiras? Deus destinou aos homens uma tarefa bem pesada, que eles têm de suportar.»

[Eclesiastes, 3,5 - 4,1, «a Bíblia para todos - edição literária», Círculo dos Leitores, p.1417-1418]

«Quando um homem medita nos objectos
dos sentidos, desperta o seu apego;
e, do apego, eis que nasce, então, o desejo;
e, do desejo, é que provém a ira;

e, da ira, provém sempre desilusão;
e, da desilusão, a perda de memória;
e, perdida a memória, esvai-se o intelecto;
e, sem o intelecto, eis que o homem perece.

Mas, se passar plo meio dos objectos
dos sentidos, com todos os seus sentidos livres
d'apego e d'ódio, mente submetida,
senhor de si, há-de ganhar a serenidade.

E, na serenidade, pra ele, não há
mais qualquer espécie d'infortúnio ou d'entrave,
porque, com a consciência em paz imensa,
esse mantém o intelecto inabalável.»


19/01/10

Jonas, o profeta foragido, em fuga à obediência

«O pequeno livro de Ionà/Jonas, só 48 versículos, é denso em acontecimentos e não desperdiça uma só palavra. Jonas, na sua língua de origem, o hebraico, é Ionà, que quer dizer pomba. É a mesma Ionà mandada por Noé da arca depois do dilúvio, mas é também o particípio presento do verbo ianà, oprimir. Entre estas duas palavras opostas se desenvolve a vida do profeta.»

Erri De Luca, "Caroço de Azeitona", Assírio & Alvim, p.71

18/01/10

Talvez me chame Jonas

Não sou ninguém:
um homem com um grito de estopa na garganta
e uma gota de asfalto na retina.
Não sou ninguém. Deixai-me dormir!
Mas às vezes ouço um vento de tormenta que me grita:
«Levanta-te, vai a Ninive, cidade grande, e brada contra ela.»
Não faço caso, fujo pelo mar e deito-me a dormir no canto mais escuro da nave,


até que o Vento teimoso que me segue
volte a gritar-me outra vez:
«Dorminhoco, que fazes aí? Levanta-te.»
-Não sou ninguém:
um cego que não sabe cantar. Deixai-me dormir!
E alguém, esse Vento que busca um funil de trasfega, diz junto  mim, dando-me com o pé:
«Aqui está; farei um trombeta com este cone de metal velho e vazio; 
por ele meterei minha palavra e encherei de vinho novo a velha cuba do mundo. Levanta-te!»


- Não sou ninguém. Deixai-me dormir!
Mas um dia lançaram-me ao abismo,
as águas amargas cercaram-me até à alma, 
a ulva enredou-se na minha cabeça,
cheguei até às raízes dos montes,
a terra lançou sobre mim suas fechaduras para sempre...
(Para sempre?)
Quero dizer que estive no inferno...
De lá trago a minha palavra.
e não canto a destruição:
apoio a minha lira na crista mais alta deste símbolo...
Sou Jonas.

Léon Felipe, «Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea», selecção e tradução de José Bento, Assírio e Alvim, p.111-112
[Nasceu em Tábara (Zamora) em 1884. Fez estudos secundários em Santander e de Farmácia em Vallodolid e Madrid. Foi farmacêutico e actor profissional. Em 1922 deixou a Espanha, passando a viver nos Estados Unidos, México e Canadá como professor de língua e literatura espanholas. Durante a Guerra Civil esteve em Espanha, colaborando na revista 'Hora de España'. Depois fixou-se no México, onde faleceu em 1968. Traduziu Shakespeare e Whitman - ob.cit.,  p. 107 ]

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...