19/01/10

Jonas, o profeta foragido, em fuga à obediência

«O pequeno livro de Ionà/Jonas, só 48 versículos, é denso em acontecimentos e não desperdiça uma só palavra. Jonas, na sua língua de origem, o hebraico, é Ionà, que quer dizer pomba. É a mesma Ionà mandada por Noé da arca depois do dilúvio, mas é também o particípio presento do verbo ianà, oprimir. Entre estas duas palavras opostas se desenvolve a vida do profeta.»

Erri De Luca, "Caroço de Azeitona", Assírio & Alvim, p.71

18/01/10

Talvez me chame Jonas

Não sou ninguém:
um homem com um grito de estopa na garganta
e uma gota de asfalto na retina.
Não sou ninguém. Deixai-me dormir!
Mas às vezes ouço um vento de tormenta que me grita:
«Levanta-te, vai a Ninive, cidade grande, e brada contra ela.»
Não faço caso, fujo pelo mar e deito-me a dormir no canto mais escuro da nave,


até que o Vento teimoso que me segue
volte a gritar-me outra vez:
«Dorminhoco, que fazes aí? Levanta-te.»
-Não sou ninguém:
um cego que não sabe cantar. Deixai-me dormir!
E alguém, esse Vento que busca um funil de trasfega, diz junto  mim, dando-me com o pé:
«Aqui está; farei um trombeta com este cone de metal velho e vazio; 
por ele meterei minha palavra e encherei de vinho novo a velha cuba do mundo. Levanta-te!»


- Não sou ninguém. Deixai-me dormir!
Mas um dia lançaram-me ao abismo,
as águas amargas cercaram-me até à alma, 
a ulva enredou-se na minha cabeça,
cheguei até às raízes dos montes,
a terra lançou sobre mim suas fechaduras para sempre...
(Para sempre?)
Quero dizer que estive no inferno...
De lá trago a minha palavra.
e não canto a destruição:
apoio a minha lira na crista mais alta deste símbolo...
Sou Jonas.

Léon Felipe, «Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea», selecção e tradução de José Bento, Assírio e Alvim, p.111-112
[Nasceu em Tábara (Zamora) em 1884. Fez estudos secundários em Santander e de Farmácia em Vallodolid e Madrid. Foi farmacêutico e actor profissional. Em 1922 deixou a Espanha, passando a viver nos Estados Unidos, México e Canadá como professor de língua e literatura espanholas. Durante a Guerra Civil esteve em Espanha, colaborando na revista 'Hora de España'. Depois fixou-se no México, onde faleceu em 1968. Traduziu Shakespeare e Whitman - ob.cit.,  p. 107 ]

13/01/10

O 13

«Talvez porque nascida numa sexta-feira dia 13, costumava interrogar-me se tal não teria interferido em meu pai perder o emprego. Infantis essas minhas congeminações e esses medos. A adolescência. Era a adolescência. Idade parece que procípia a nos supormos a mais no mundo. Um "a mais", quanto a mim, o mesmo que "mal-grado meu".
Ana falava de como o marido chegara cedo, naquela manhã, e com um ar abatido, se deixara cair no cadeirão do quarto e escondera a cara nas mãos: "Despedi-me... Estou desempregado.»
Era uma empresa bancária particular que recebia dinheiro em depósito e fazia empréstimos. Empresa pequena. Além de meu pai, o contabilista, um manga-de-alpaca tc-tc à máquina, e o chefe sujeitinho tão rude como refalsado. O pai propusera aumento de salário, trabalhava duro e ganhava uma ninharia, impossível continuar em semelhantes condições. O patrão, no entanto, a desconversar, a trocar-lhe as voltas, cínico, como se não se tratasse de assunto sério. Discutiram em seguida, conquanto que em vão. Desesperado, por fim, o guarda livros, largando a pasta no tampo da secretária e envergando o casacão, saiu porta fora.
Na poltrona aos pés da cama da mulher, arquejava, José. Errara, quando Deus quer... Devia ter considerado, pensado melhor, não se precipitar. Que afinal a família a crescer - e ainda bem, adorava crianças -, a crescer a família e os encargos, e ele, desgraça das desgraças, desempregado! Levantava-se. Tornava a sentar-se. Andava de um lado para o outro, pálido, perturbado. Ana a tranquilizá-lo. "Ora, tu tens carteira profissional." E conhecedor do ofício como poucos, e conceituado em toda a cidade, colocações não haviam de lhe escassear. Pegando-lhe na mão, afagava-o, a companheira. A mão muito branca, com anel de cachucho: um brilhante que, esfregado em flanela de lã, secava, o mesmo que dizer sarava um terçol num olho.
Chamando depois a empregada, a parturiente pediu-lhe que fizesse um chá. Chá de macela. Macela-de-S.-João, quinze flores para dois quartilhos de água a ferver e cinco minutos a abrir à cor. Tomaram então os dois a tisana por entre um total silêncio. Com o abalo, para mais após o parto, Ana começava a sentir-se indisposta, latejavam-lhe as fontes, sobreveio-lhe febre ao entardecer.
Eu tinha vindo ao mundo na véspera, 13 de Janeiro.
O tio, que na ocasião se encontrava em Lisboa, a falta que Luiz ali não fazia. Cunhados muito unidos, muito bem dados, esses. Fosse qual fosse o problema, o aperto, nenhum deles dispensando o parecer do outro.
(...)
Tempo em que as superstições, o que eram as superstições senão o pressentimento do que havia de vir e o sobreaviso? Nesse tempo e ainda hoje. Intervenção, aí, dos astros, dos elementos, da própria Natureza. Quando não da hora em que se nasce, do local onde se vive, da casa que se habita: o lado para o qual abre a porta da rua, as sombras, os ecos, as memórias da casa.»  


[Maria Ondina Braga, «Vidas Vencidas», Caminho, p.71-72 e 74]

Maria Ondina Braga nasceu no dia 13 de Janeiro, há setenta e oito anos, em Braga. Ao Ernane C.,  que teve a gentileza de chamar a minha atenção para este facto, aquele abraço!

Os belos monstros



«I want to do something for her... but what?»

Gary Trousdale e Kirk Wise, «Beauty and the Beast»

12/01/10

Ao «Almocreve das Petas»



Ao machucho poetarrão José Daniel Rodrigues da Costa


«Não presta Coridon, não presta Elpino,
Filinto é ninharia, é lixo Alfeno;
Albano fala só do Tejo ameno,
Só tardes e manhãs descreve Alcino;

Trescala aos Seiscentistas o Paulino;
Pois Bocage! Isso é peste, isso é veneno!» -
Roncava charlatão rolho e pequeno,
Pequeno em corpo, em alma pequenino.

- «Quem acha Voss'mecê (lhe sai dum lado
Taful do sério rancho das lunetas)
Quem acha para versos estremado?» -

- Quem?! (diz o tal) não façam lá caretas:
Um que dos seus papéis anda pejado,
O aguazil Daniel, cantor de petas».

Ao mesmo, publicando o «Almocreve das Petas»
 
Das Petas o Almocreve é obra tua,
Bem se vê,  Daniel, na frase e gosto;
Adiça três de Abril ou seis de Agosto,
É de quem vende as rimas pela rua.

Cheira a teu nome o roubo da perua,
E entre o tostado arroz o gato posto;
Eis a obra melhor que tens composto,
Inda que de artifício e graça nua.

A gente por Lisboa anda pasmada,
Vendo-te farto e cheio como um ovo
Dos alvos pintos, que te deu por nada.

E frio de terror murmura o povo
Que a tua estupidez anda pejada,
E que cedo se espera um parto novo.

Ao mesmo, dando à luz o segundo volume das suas «Rimas»

Tomo segundo à luz saiu das «Rimas,
Obra mui de vagar, mui bem composta,
E sujeita depois a doutas limas.

Fala em ópios, em manas, fala em primas,
Diz coisas de que a plebe não desgosta,
Morde em peraltas, na ralé disposta
A saltos, macaquices, pantominas.

Por estas e por outras que tem feito,
Verá qualquer leitor nas obras suas
Que ele para versar nasceu com jeito.

Acham-se em tendas, acham-se em comuas;
E para lhes aumentar honra e proveito,
As vende o próprio autor por essas ruas.

[pág. 139-140]

Caravaggio



Michelangelo Merisi da Caravaggio [1571-1610] é o autor deste David con la testa di Golia, presentemente em exposição na Galleria Borghese, em Roma. Fosse este o único quadro em exposição e ainda assim valia a pena a viagem. Não é, como se pode verificar aqui. Infelizmente, não vou poder ir até lá. Consolei-me com este documentário da BBC sobre a vida e obra de Caravaggio que encontrei no You Tube, em seis partes. Para quem tem o mesmo problema que eu, aqui ficam os links:
 

10/01/10

A Tempestade

«Deposed from his dukedom in Milan and cast out to sea with his daughter, Miranda, Prospero has a miraculous power over the island on which they have made their home. As the play begins, Prospero has used his art to bring about another shipwreck. This time his usurping brother and his colleagues are cast ashore, but through the power of magic, love and forgiveness, chaos is gradually transformed into order.» [texto da contracapa do livro «The Tempest», de William Shakespeare, Penguin Popular Classics, 2001]






09/01/10

Casa branca

Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.

...........................................

A ti eu voltarei após o incerto
Calor de tantos gestos recebidos
Passados os tumultos e o deserto
Beijados os fantasmas, percorridos
Os murmúrios da terra indefinida.

Em ti renascerei num mundo meu
E a redenção virá nas tuas linhas
Onde nenhuma coisa se perdeu
Do milagre das coisas que eram minhas.


[Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia, Círculo de Poesia - Moraes Editores, p.17]

08/01/10

Ao machucho poetarrão José Daniel Rodrigues da Costa

Tomo segundo à luz saiu das «Rimas,
De José Daniel Rodrigues Costa»,
Obra mui de vagar, mui bem composta,
E sujeita depois a doutas limas.


Fala em ópios, em manas, fala em primas,
Diz coisas de que a plebe não desgosta,
Morde em peraltas, na ralé disposta
A saltos, macaquices, pantomimas.


Por estas e por outras que tem feito,
Verá qualquer leitor nas obras suas
Que ele para versar nasceu com jeito.


Acham-se em tendas, acham-se em comuas;
E para lhe aumentar honra e proveito,
As vende o próprio autor por essas ruas.

[Manuel Maria de Barbosa Du Bocage, «Sonetos», Livraria Bertrand - Obras Primas da Língua Portuguesa, p.140]

Nota: comuas = latrinas

06/01/10

O artista brinca sempre

«Gostava sim - porque não havia de gostar? era um luxo, um prazer do espírito - de fazer novelas. De tratar figuras e cenários, de falar pelos outros, escrupulosamente; de seguir pistas sentimentais.
Mas não tenho de as fazer!
A qualidade de desenvoltura artística não preenche os espaços, todos os espaços, de uma composição literária.
Histórias, saber contar histórias (mesmo nestas horas chatas e banais, vazias, do tempo individual) deve ser agradável. E ver depois que se contaram bem, muitíssimo agradável!
M. contou histórias novas. Sem bizararia. O seu mérito foi esse. Achou histórias para contar, e deu-lhes alma. Caiu aqui, levantou-se ali... mas carregou-as, insuflou-as de ardência, de espectáculo e de modéstica, de personalismo afectivo.
I. achou (foi lúcida) que era uma portuguesa. E que os portugueses são todos assim, mas porquê? desenganados, quase cépticos, deplorativos.
Sim, há excessivo subjectivismo, excesso de intromissão pessoal na narrativa dos portugueses. Põem-se demasiado ao espelho nas suas obras. Hábito? Moda fatalmente transmitida? Comodidade? Restrição de estilo?
Mas M. contou, soube contar coisas de grande afinidade, todas sujeitas a um nexo. Coisas de um lado, de uma janela da sua visão. E bateu-as, encheu-as dos seus sentimentos.
A vida, vista, presenciada, é plana, insinuosa, sem vulto. M. deu-lhe vulto; pela anedota? Sim, mas também pelo seu comentário e o fervor com que apresenta a anedota.
M. mostrou-nos a sociedade que conhece, mas com que não lida, com que se não comprometeu. Porque M. tem no seu livro muitos dos seus sentimentos e ressentimentos, mas não as suas atitudes, o seu espírito mundano, convivente, nem o seu 'savoir-faire'.
Esta é a grande dificuldade ou cautela do artista: dar-se, comprometendo-se. Deseja e foge a comprometer-se. O artista brinca sempre. Consciente e inconsciente. Defende-se dos outros, seus próximos. Dos outros e do seu próprio constrangedor, pesante, imediato ambiente.»

[Irene Lisboa, «Solidão II», Editorial Presença, 1999, p.92-93]

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...