«Agora que sabia fatos sobre Martim, agora que finalmente o olhava de olhos abertos, agora ela o desconhecia. E como um cego que tivesse recobrado a visão e não reconhecesse com os olhos aquilo que mãos sensíveis sabiam de cor, ela então fechou um instante as pálpebras, tentando recuperar o conhecimento íntegro anterior; abriu-as de novo e procurou fazer das duas imagens uma só. — Eu disse... — de novo ela o olhou quieta; mas porque não precisava mais dele para nada, pôde também olhá-lo com piedade e desprezo.»
[Clarice Lispector, «A maçã no escuro», Relógio D'Água, p.313]O dia era de Outono e o vento soprava em pequenas rajadas, deixando na pele ainda nua das pernas um rasto frio. Encostada ao ferro da paragem, sozinha na rua deserta, a rapariguinha fixava os olhos na linha do horizonte que marcava o início da estrada, à procura de aí ver aparecer o tejadilho verde e logo a seguir a tela branca com letras pretas, a indicar o destino, e finalmente o autocarro inteiro, rolando desengonçado, encosta a baixo, até ao sítio onde ela estava. Esperava, e enquanto esperava, anoitecia, e em breve veria acenderem-se as luzes da rua. Na estrada, o movimento não era muito. Apenas de vez em quando um carro passava, dentro seguia gente com pressa de chegar a casa, o jantar por fazer, as crianças para despachar, banho, jantar e cama. Passavam sem reparar na paragem, na rapariguinha, de pé, à espera, olhos fixos no horizonte. Passavam, apenas, rumo ao destino. E cada vez que um deles passava sem olhar, ela suspirava de alívio, confortada pela segurança de uma rua vazia. Porque os outros são uma ameça, havia-lhe ensinado a mãe. «Nunca aceites boleia», dizia ela. «Nunca! Não confies em ninguém.»