Mostrar mensagens com a etiqueta Nuno Júdice. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Nuno Júdice. Mostrar todas as mensagens

07/09/25

Ciclos

 



As casas ardem como ardem
as florestas. Por cima delas, outras casas
crescem como nascem outras
florestas. O que se renova pode ser visto como
se nada existisse antes dele: as janelas
que vemos, fechadas ou abertas, dão para
vidas, fechadas ou abertas, que são como
todas as vidas que se passaram por trás
de outras janelas, fechadas ou abertas. E
as árvores que nasceram onde outras
árvores arderam deitam as mesmas folhas
e brilham com as mesmas flores, enquanto
outros incêndios não destroem outras
casas e outras florestas. De que
nos queixamos, então? Dessa fotografia
em que o fogo apagou o único rosto
de que nos queríamos lembrar? Desse tronco
que abrigou o corpo em busca de uma sombra,
depois do amor? E quando olho estas
casas que se erguem à minha frente,
ou quando passo numa floresta repleta
de sombras e de perfumes, pergunto o que
sucedeu a esses breves instantes que
o tempo apagou, no seu curso, e se desfazem
em nada quando os procuramos, no gesto
inútil de reencontrar esse rosto de que não ficou
nem a memória, ou na tentação de procurar
a árvore que acolheu um amor que acreditou
ser eterno como as flores dessa primavera.

Nuno Júdice, "O Coro da Desordem", Publicações D. Quixote, 2019, p.24-25       

 







25/04/25

25 de Abril

Na manhã da revolução - céu cinzento, dia a ameaçar
chuva - não fui trabalhar, como toda a gente. Uma revolução
é para isso: para dar feriado no dia em que a tropa sai
à rua, e depois em cada aniversário, desde que alguém
a ganhe, claro, como neste caso aconteceu. Mas quem ganhou?
Ninguém? Todos? Todos e ninguém, no fundo, como se viu
à medida que o tempo passou, e a revolução foi dando
os seus frutos, caindo com o outono, desabrochando nalgumas
primaveras, mas acabando, como todas as revoluções, no ritmo
normal das estações e do tédio do tempo. No entanto,
lembro essa manhã. É verdade que não é das circunstâncias
que fizeram a História, dos grandes nomes e das grandes causas,
que me lembro. Tudo isso é o passado, o que está nos livros,
e há-de ser ensinado enquanto houver História para ensinar. O
que não há-de estar nesses livros, porém, é o que esse dia me
deu: tu, vendendo os primeiros jornais a sair da clandestinidade,
ainda a revolução não estava ganha; o olhar que trocámos, quando te
comprei um desses jornais, com o gesto frio de quem cumpre
a obrigação militante que não era a minha, a não ser que
se entenda por essa obrigação a militância do meu amor por ti; e
o modo como nos despedimos, sabendo que uma revolução é o separar
dos caminhos, o sacrifício dos sentimentos à liberdade das ideias,
a entrega do ser ao absoluto das abstracções. Continuaste a vender
os jornais; e eu, subindo a rua, esperei que deixasses de me ver
para deitar fora o exemplar que te comprei: nem eu era desse partido,
nem o amor pode interromper uma revolução, mesmo quando
ela nos obriga a deitá-lo para o cesto dos papéis.

Nuno Júdice, "50 anos de Poesia - Antologia Pessoal (1972-2022)", Publicações D. Quixote, p.122-123  

   

 

Criação

  Esta dura crueza de navio à deriva, seguindo a tempestade, aguarda essa palavra que inicia todo um começo sem saber o fim. Dum silêncio no...