Como a alma se faz água

Existes? não existes? imagino
como a alma se faz água
e o coração maravilha
quando na sombra da tarde
me atravessas pela vida.

Alberto Soares, Equilíbrio, Caminho da poesia, p.81


Jorge de Sena

Jorge de Sena foi um escritor, um ensaísta e um poeta português. Grande. Morreu no estrangeiro e o regime celebrou-se com as suas ossadas. Sena era do tempo em que os intelectuais se enojavam com o ambiente irrespirável do país. Agora os intelectuais não só não se enojam como apoiam ambientes irrespiráveis. Não tenho bem a certeza é que sejam intelectuais. Duvido, porém, que, se fosse vivo, Sena apreciasse o fútil exercício. O seu justíssimo orgulho amargo não se daria bem com piedades póstumas. Eduardo Lourenço falou, certeiro, do «regresso do indesejado». Anos a fio, no antigo como no novo regime (...) trataram-no sempre como um intruso, como um estranho ao cânone oficial e ao «amiguismo» circular. Quando olho para aquilo a que apelidam de «literatura portuguesa» - uma categoria pífia onde cabe tudo, desde o romance encomendado a jornalistas da moda, a meninos e meninas dados a tremuras cerebrais lá onde nem existe uma cabeça - percebo melhor por que é que um homem da dimensão de Sena teve de ir embora daqui para ser Jorge de Sena. Porque aqui matam as pessoas em vida para, depois de mortas, as exibirem como troféus nacionais. Sena acompanhou a minha adolescência e a minha juventude. Como ensaísta, como camonista, como poeta, como romancista, como contista. Em suma, como um Homem. A melhor homenagem que se deve fazer a seres raros como Sena é lê-los e deixá-los entregues à luminosa eternidade a que pertencem.

João Gonçalves, Contra a Literatice e Afins, Guerra e Paz, p. 50-51
 

Minha mãe

Minha mãe zangava-se muito. Entrava em casa quando vinha de fora, da quinta ou da sapataria, e a casa cobria-se de culpas, toda gente era incluída.
Não sei que humor devastador a tomava. Ou sei, agora que sinto o mesmo, uma espécie de desabrido desgosto de retomar um reino que se herdou e não o queríamos. Estou a parecer-me com a minha mãe, finalmente encontramo-nos depois de tantos anos de frieza meio arrependida. Eu acusava-a de ser tão adaptada e falar por provérbios que permitem alguma segurança de opinião. Eu fazia os meus provérbios, era sempre irascível na maneira de proibir qualquer adulação. Cuidado em ter amor por mim! O amor parecia-me enfadonho quando oferecido; tinha de ser difícil e não carinhoso e leviano. "Amor de menino é como água em cestinho" - o mundo parecia-me povoado de crianças, dessas que morrem cedo e têm no peito um vazio.

Agustina Bessa-Luís, O livro de Agustina Bessa-Luís, Guerra e Paz,p. 80-81