01/07/10

A moralidade

A moralidade. Seria simplório pensar que o problema moral em relação aos outros consiste em agir como se deveria agir, e o problema moral consigo mesmo é conseguir sentir o que se deveria sentir? Sou moral à medida que faço o que devo, e sinto como devo sentir? De repente a questão moral me parecia não apenas esmagadora, como extremamente mesquinha. O problema moral, para que nos ajustássemos a ele, deveria ser simultaneamente menos exigente e maior. Pois como ideal é ao mesmo tempo pequeno e inatingível. Pequeno se se atinge: inatingível, porque nem ao menos se atinge. «O escândalo ainda é necessário, mas ai daquele por quem vem o escândalo» - era no Novo Testamento que estava dito? A solução tinha de ser secreta. A ética da moral é mantê-la em segredo. A liberdade é um segredo.
Embora eu saiba que, mesmo em segredo, a liberdade não resolve a culpa. Mas é preciso ser maior que a culpa. A minha ínfima parte divina é maior que a minha culpa humana. O Deus é maior que minha culpa essencial. Então prefiro o Deus, à minha culpa. Não para me desculpar e para fugir mas porque a culpa me amesquinha.

Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H., Relógio D'Água Editores - Ficções, p.69 


28/06/10

Só à laranja e aos gregos...

Só à laranja e aos gregos é concedida 
uma salvação circular. Esquecer
para melhor saber, odiar
para melhor amar, eis os dois princípios
da sua paciência mais avançada.
E só os gregos podem pisar essas lajes
ameaçadas. Nós, os romanos,
sua herança encalhamos nos ramos das árvores
como precisamos do telefone, dos sinais de trânsito,
do computador, do cimento armado, do plástico,
do robot
para estudarmos o clima e entrarmos na sabedoria
dos arvoredos onde estamos ocultos.
(...)

 Luís Filipe Rodrigues, dizer de véspera, Círculo da poesia - Morais Editores, p.22.

22/06/10

Cólera

Liberta o coração para razões que prolongam o desejo de viver. Quem não se encoleriza acaba por pedir socorro por meio de doenças, obsessões e livros de viagens.

Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores, p.53



20/06/10

Fecho

Vimo-la por momentos na equívoca
luz da manhã: tínhamos decidido
que não a olharíamos de novo,
nem mais ninguém: melhor assim, talvez,
nesse restrito abismo incongruente
fechar depressa todo o sofrimento.

Gastão Cruz, Escarpas, Assírio e Alvim, p.47


Antonio Vivaldi, Gelido in ogni vena,
Magdalena Kozena, Venice Baroque Orchestra, maestro: Andrea Marcon

19/06/10

A verdade não é coisa que se ame

Para confessar-se, a pessoa divide-se em duas, e uma delas mente. Para ser sincera, a pessoa ou acredita demasiado em si mesma, ou demasiado acredita nas suas próprias criações. No primeiro caso, é costume achar-se que mente como homem; no segundo, que mente como artista. Quando precisamente ela põe toda a sua honestidade em ser verídica. Ou, se quisermos, não há desonestidade a que ela não se arrisque por amor da verdade. A explicação deste mistério talvez esteja em que a verdade (exista ou não) não é coisa que se ame, ou não pode ser a verdade.

Jorge de Sena, in prefácio do livro «Confissões», de Jean-Jacques Rousseau, Portugália, p.20-21

16/06/10

Verdades práticas

No tempo em que o Diabo florescia, os pânicos, os terrores, as inquietações eram males que beneficiavam de uma protecção sobrenatural: sabia-se quem os provocava, quem presidia ao seu desabrochamento; abandonados agora a si mesmos, eles transformaram-se em "dramas interiores" ou degeneraram em "psicoses", em patologia secularizada.

E.M.Cioran, Silogismos da amargura, Letra Livre, p.21

14/06/10

Voar como os pássaros

outra vez peixe cozido?

não sabendo a sorte que é poder comer qualquer coisa, em vez de lhe servirem tubos de plástico num prato, acompanhados por um copo de soro

qual o sabor dos pensamentos?

das palavras?

da minha carne que apodrece?

a minha boca está seca, não percebo para que me tiram a saliva, de vez em quando alguém me molha os lábios e sinto o gosto fresco da água misturado com o sabor de pequenas fibras de algodão

(o algodão doce da feira popular)

também não percebo por que não me dão comprimidos para tomar, como é que esperam que eu melhore? um daqueles de chupar, de enrolar na lígua, daqueles que nos devolvem a súbita tranquilidade de não tarda estás fino

gostava de ser um pássaro e saborear o milho que me atirassem, enquanto andasse no terreiro com o meu andar

desajeitado, inclinado, ávido

porque ninguém tira a saliva aos pombos, nem mete tubos por eles adentro, e se fosse um pássaro podia sair daqui, por uma janela aberta, e voar até às nuvens, onde pudesse sentir o seu gosto húmido de algodão

13/06/10

Pandora




Dantes vivia sobre a terra a raça humana
a recato da desgraça e do penoso trabalho,
e das doenças horríveis, que trazem a morte aos homens.
Mas a mulher, com suas mãos, ergueu a grande tampa da vasilha,
e dispersou-os, preparando à humanidade funestos cuidados.
Dentro da vasilha, na morada indestrutível,
abaixo do rebordo, ficou apenas a Esperança. Essa
não se evolou. Antes, já ela tornara a colocar a tampa,
por desígnios de Deus detentor da égide, que amontoa as nuvens.
Mas tristezas aos centos erram entre os homens.
Cheia está a terra de desgraças, cheios os mares.
As doenças, umas de dia, outras de noite,
visitam à vontade os homens, trazendo aos mortais
o mal, em silêncio, pois Zeus prudente lhes retirou a voz.
E assim não há maneira de evitar os desígnios de Zeus.



Hesíodo, Trabalhos e Dias, 90-105, in Hélade, Antologia da Cultura Grega, organização e tradução de Maria Helena Rocha Pereira, Guimarães, p.109.

25 de Abril

Na manhã da revolução - céu cinzento, dia a ameaçar chuva - não fui trabalhar, como toda a gente. Uma revolução é para isso: para dar feriad...