06/03/10

Com medonho estridor, o Inferno fala

 

Geme o Centro mortal, o Abismo estala,
O Vento se enfurece, o Céu se enluta;
Do mais enorme peso a massa bruta
Rompe em soluços, em temor se abala.

O mar o seu prefixo termo escala;
Na prisão subterrânea o fogo luta,
E horrores vomitando em cada gruta,
Com medonho estridor o Inferno fala.

Tanta desordem, tanto desconcerto
Nos elementos todos, são indício,
Que a ruína universal vem já mui perto.

E o mais certo sinal do precipício,
É crescer sem temor o desacerto,
E subir nos mortais sem termo o vício.
                                                                 I, 36

Abade de Jazente, Poesias, INCM, p.66

03/03/10

Raposas


Março

Chove lá fora.
Há um silêncio enevoado e triste
a saber a demora
sobre tudo o que existe.

Minha alma recolhe-se do frio
e une as mãos às mãos do sentimento.
Chove lá fora. Engrossa o rio
do meu pensamento.

O dia agora é um lençol molhado
estendido ao longo dos caminhos.

Eu sou este dia de março
a arrefecer o amor dos primeiros ninhos.


Albano Martins, «Assim são as algas» - poesia 1950-2000, Campo das Letras, p.22

01/03/10

O último segundo


Os fios do coração



Tão difícil o encontro quão difícil é o apartamento.
Uma a uma as flores estiolam-se no quebranto do vento leste.
Os bichos-da-seda de primavera dobam até à morte os 
fios do coração:
O  pavio da vela tornando-se em cinzas antes de as lágrimas lhes secarem.
A preocupação do espelho da manhã é mudar nela o aspecto melancólico:
Alta noite a recitar um poema será que ela não sente o frio dos raios de luar?
A colina das fadas não é longe daqui.
Pássaro azul, apressa-te agora, vigia-me a estrada.


Li Shang-Yin, Poemas sem título, 812-858, China, Dinastia Tang, 
in Nocturno em Macau, de Maria Ondina Braga, Caminho, p.9 

27/02/10

Este cão amargo rói os dias

.

EM LOUVOR E ACIDENTE

De mastigar os ossos nas sílabas espessas
este cão amargo rói os dias
sob o peso da chuva com a morte
por entre os lábios o marfim das pedras

com a lua a destruir os muros sucessivos
vai latindo. Um rio que passa
tão velho e transparente sacrifício
crescendo nesta sombra de ameaças

e pequenos acidentes de percurso.
É nas súbitas varandas que palavras
neutras ou amigas se recusam
concêntricas circulam e regressam

a espaços mínimos cada vez menores
onde não é possível respirar contigo.

[Alberto Soares, Escrito Para A Noite, 1984, respigado aqui]

25/02/10

Mata-me pensar que em mim não pensas

Fosse-me a carne opaca pensamento,
a vil distância não me deteria
e de remotos longes num momento
até onde te encontras eu viria.
Nem importava que tivesse os pés
no ponto que é de ti mais afastado:
o pensamento vai de lés a lés
mal pensa no lugar a que é chamado.
Mas mata-me pensar que em mim não pensas
para saltar as milhas quando vás;
feito de terra e de água em partes densas,
espero em ânsias o que o tempo traz.
   Nem lentos elementos trazem mais
   do que choros, da nossa dor sinais.

[Vasco Graça Moura, «Os Sonetos de Shakespeare - Versão integral», Bertrand, p.99]

O papagaio do pensamento

«Note-se que aquele que escreve, por um circunlóquio próprio, posição, atitude (e estou fazendo gestos, hem! virando as mãos para o peito... escapa-se-me a palavra), atitude expectante, recolhida ou de rodeio, raro aborda de pronto o tema escolhido, que andou ruminando, com mais ou menos consciência. E porquê? Suponho que pelo receio de errar, de se exceder, de dizer o que não quer, que apenas suspeita.
A sua atitude, que apontei, é toda de tentação e de esquivança, de flutuação. E por isso muitas vezes fala de alhos pensando em bugalhos.
Outro problema, se problema é, e se no primeiro não está implícito, se põe a quem escreve. A quem escreve que é como quem diz: a quem trabalha da pena e se entretém gastando o espírito, excitando-o e refreando-o ao mesmo tempo em cogitações literárias. E é o modo de surpreender (de surpreender não digo bem, bem, de segurar) o próprio pensamento. Ou antes a dificuldade, a incerteza, a impotência de lançar o fio bastante para a subida do 'papagaio do pensamento', papagaio que há-de arrancar de baixo por efeito de um sopro mais raro que o vento, sendo ele mais frágil que papel de seda.
O sopro de arrancada e depois o fio a largar, são... que são? dificuldades e incógnitas, fora de dúvida, sempre propostos ao manejador da pena.
Tanto assim que se lê um bocado de prosa, como este de Camus, prosa eivada de poesia, mas quase levada à mão, medida, tensa, e sente-se a cautela do seu autor, dirigindo-a. Isto é, a porção de fio lançado e a resistência da mão sustentando-o.»

[Irene Lisboa, «Solidão II»,  Editorial Presença, p.114-115]

Tudo flui

«Para quem entrar no mesmo rio, outras são as águas que correm por ele.» (frg.12 Diels-Kranz) Heraclito , "Hélade - Antologia da Cultur...