28/08/10

Oferecendo de beber a Pei Ti

Provável auto retrato de Wang Wei


Vem beber um copo e descansar,
os homens mudam sempre, como as ondas do mar.
Nós dois temos envelhecido juntos,
apesar dos reveses, continuamos vivos.
O primeiro a habitar uma casa de portões escarlates
pode sorrir, ao olhar os outros de chapéu na mão.
Tu sabes, basta um pouco de chuva
para reverdecer a erva dos caminhos.
O vento da Primavera é ainda frio
mas os botões das flores quase desabrocharam.
Porquê tanta pergunta, tanta luta,
os negócios do mundo, as nuvens flutuantes?
Descansa, deixa fluir a vida,
e vem jantar comigo.

Wang Wei, Poemas de Wang Wei, tradução, prefácio e notas de António Graça de Abreu, Instituto Cultural de Macau, 1993, p.170

24/08/10

Curva cega

é sempre a mesma curva

cega, neste troço de pedra lascada,

não há como escapar

às primeiras chuvas

ao piso escorregadio dos olhos,

despiste, falésia mortal,

o coração não entende

sinais vermelhos.

Renata Correia Botelho, 
in revista Telhados de Vidro nº 2, p. 39, Averno, Lisboa, Maio 2004, 
respigado aqui e com agradecimento a APS, que recomendou.


20/08/10

A escrita (novamente)

Escrever

Se eu pudesse havia de... de...
transformar as palavras em clava!
havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressoante!
Sem música, como um gesto,
uma pancada brusca e sóbria.
Para quê,
mas para quê todo o artifício
da composição sintáctica e métrica,
este arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras: pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo!
Vejo, admiro, desejo?
Ou não... ou sim.
E, com isto, continuando...

E gostava,
para as infinitamente delicadas coisas do espírito
(quais? mas quais?)
em oposição com a braveza
do jogo da pedrada,
da pontaria às coisas certas e negadas,
gostava...
de escrever com um fio de água!
um fio que nada traçasse...
fino e sem cor... medroso
Ó infinitamente delicadas coisas do espírito...
Amor que não se tem,
desejo dispersivo,
sofrimento indefinido,
ideia incontornada,
apreços, gostos fugitivos...
Ai, o fio da água,
o próprio fio da água poderia
sobre vós passar, transparentemente...
ou seguir-vos, humilde e tranquilo?

Irene Lisboa (João Falco), Folhas Soltas da Seara Nova (1929-1955), Antologia, Prefácio e Notas de Paula Morão, INCM, p.132-133

13/08/10

A escrita (ainda)

A palavra é m espartilho das ideias - diz-se. É o pior (...) Agora mesmo eu estou aqui, difuso neste ambiente de fumo de cigarro, cansado, e tenho flores na secretária, cartas, retratos, o candeeiro apagado, livros, tinta, pés frios, uma carroça martela a calçada - e tudo é presente ao mesmo tempo e tenho uma ideia sumária sobre tudo, e há gente na vizinhança falando, e portas cá em casa batendo, e um garoto assobia lá fora, mais carroças, um pássaro num telhado e o céu azul, respiro e repouso. Tudo isto é exacto e simultâneo. Como descrevê-lo porém sem lhe destruir a interpenetração e a verdade de ser simultâneo? 

Vergílio Ferreira, Diário Inédito, Bertrand Editora, p.26

12/08/10

Home

A escrita

a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada

(...)

05/08/10

O ódio


James Ensor, Ensor with masks

Je ne hais personne; - mais la haine noircit mon sang et brûle cette peau que les annés furent incapables de tanner. Comment dompter, sous des jugements tendres ou rigoureux, une tristesse hideuse et un cri d'écorché? (...) E. M. Cioran, Précis de Décomposition, Gallimard, p.108

01/08/10

Ressurgiremos


 
Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos
E em Delphos centro do mundo
Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta

Ressurgiremos ali onde as palavras
São o nome das coisas
E onde são claros e vivos os contornos
Na aguda luz de Creta

Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo
São o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a terra de frente
Na luz limpa de Creta

Pois convém tornar claro o coração do homem
E erguer a negra exactidão da cruz
Na luz branca de Creta.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia, Círculo de Poesia,
Moraes Editores, p.179

27/07/10

Escrito para a noite

É tão difícil viver com esta gente trazer-te
dentro de mim numa atenção discreta

esconder-te viva respirar
o ar pequeno e leve em que te moves.

Alberto Soares, Escrito para a noite, INCM, p.32


Nota: Há poemas que se guardam no coração e por isso estão sempre próximos. Aos que não apreciem repetições, as minhas desculpas.

26/07/10

O casamento

Quem inventou o casamento era um engenhoso torturador. É uma instituição devotada ao entorpecimento dos sentidos. O objectivo absoluto do casamento é a repetição. O melhor que pode aspirar é a criação de fortes dependências mútuas.
As discussões acabam por se tornar irrelevantes, a menos que um dos dois esteja sempre preparado para as levar por diante - isto é, a acabar o casamento. Por isso, depois do primeiro ano, deixa-se de «fazer as pazes» depois de se discutir - recai-se num furioso silêncio, que passa a silêncio normal e depois tudo recomeça novamente.
Susan Sontag, Renascer - Diários e Apontamentos 1947/1963, Quetzal, p.100-101


Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...