Li algures que os gregos antigos
não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam
apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu
quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas
gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras
para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus
precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu
próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens
extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas
grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se
inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e
saindo
dos dez tão poucos dedos para
tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que
responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta
comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma
canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com
que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha
paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino,
o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que
eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e
moderna,
os cegos, os temperados, ah não,
que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega.
Herberto Helder, "A faca não corta o Fogo - Súmula & Inédita", Assírio & Alvim, 2008