26/09/25

ENVOI

 



Há quantos anos convosco vivo
poetas deste mundo e todos os feitios,
como com tudo quanto seja criação humana,
desde as fantasias da carne à contemplação do espaço!
Se vos traduzo para vós em mim,
não é porque vos use para dizer o que não disse,
ou para que digais o que não haveis dito -
- mas para que sejais da minha língua,
aquela a que eu pertenço e me pertence,
e assim nela eu me sinta em todo o mundo e sempre,
por vossa companhia.
Pois para quem haveis escrito
senão para quem vos ame e queira.


Jorge de Sena, "Visão Perpétua", Morais Editores/INCM, 1982, p.108 

 


 

 

 

 






25/09/25

Sete Danças Gregas






Maurice Béjart (coreografia)
Mikis Theodorakis (música)
Giorgio Madia e Marc Hwang (bailarinos) Bejart Ballet Lausanne, Palacio de Congresos, em Madrid (1986)

A paixão grega


Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega.

Herberto Helder, "A faca não corta o Fogo - Súmula & Inédita", Assírio & Alvim, 2008 



Criação

  Esta dura crueza de navio à deriva, seguindo a tempestade, aguarda essa palavra que inicia todo um começo sem saber o fim. Dum silêncio no...