05/06/11

Quadros [1]



A Vocação de S. Mateus é mais uma interpelação que uma designação imperativa. Cristo encontra nele um dos seus apóstolos; mas o interpelado, perplexo, não sabe bem se o apelo lhe é dirigido. À mesa em que se senta com outros publicanos, Levi, que será Mateus, ainda não sabe quem será, e os outros nem sequer parecem saber quem é Jesus. Caravaggio não quis mostrar a cena de um reconhecimento, mas o primeiro momento de um encontro; e isso, lido na filigrana da muito apertada ortodoxia do tempo, seria heresia, porque recusa a representação da predestinação e da graça divinas, categorias cuja pertinência iria ocupar boa parte das polémicas teológicas de meados do século XVII.
Como todos os figurantes se vestem com roupas contemporâneas, a cena perde vigor histórico para ganhar um inesperado dinamismo plástico. Em boa verdade, a única coisa que interessa a Caravaggio é que a sua pintura funcione e que o jogo dos corpos e das expressões se equilibre na complexa arquitectura das sete personagens que figuram na enorme tela. Porque, na até então curta obra de Caravaggio, essa era uma dupla 'première': por um lado, as duas telas eram de longe os maiores formatos a que se abalançara; por outro, porque o máximo que arriscara pintar, até então, eram três personagens, precisamente no célebre quadro [Os batoteiros] que abrira os olhos do cardeal Del Monte para o seu talento.
Alguns julgam ver na figura em primeiro plano (possivelmente, o apóstolo Pedro), uma forma hábil de Caravaggio fugir à representação de Jesus com vestes contemporâneas, o que lhe podia valer problemas com as autoridades eclesiásticas. É possível. Mas Pedro, que quase oculta Cristo, é uma adição tardia, sabe-se hoje. Basta olhar para o quadro como facto de pintura: a figura de Pedro cumpre a função de «compensar» a presença avassaladora de Cristo, irrompendo do lado direito da cena, precisamente de onde vem a luz. Sem essa figura circunstancial, que intercepta o braço de Jesus, deixando apenas ver o gesto adâmico pelo qual designa Mateus, a tela seria a representação de um episódio da vida de Cristo e não o momento em que Mateus é designado pelo destino. Ou seja, sem Pedro, não haveria interpelação, surpresa e dúvida, apenas imperativo e reconhecimento.

António Mega Ferreira, Roma - Exercícios de reconhecimento, Sextante Editora, p. 81-82

28/05/11

O primeiro

Relembro-nos ocultos sob a pérgula de glicínias.
A luz pingava suspensa em cachos de lilás.
Sentíamo-nos submersos num líquido turquesa
onde os gestos morosos subaquáticos pareciam
brancos e nus.
A aproximação dos lábios
teve a lentidão dos moluscos marinhos.
O teu braço cingiu-me a nuca,
as minhas mãos perderam-se no infinito
e o mundo parou assim...

Só há um beijo válido: o primeiro.
É puro, de mármore, eterno.
Merece uma estátua no meio do jardim.

Paulo Assim, Celulose, Lugar da palavra, p.19


26/05/11

Depois da noite

Olhos de maio rios muito claros
trazendo soltos seixos de um cinzento
que em breve se mistura de silêncio
brando. É tarde pra movê-los

do meu rosto ao teu que trouxe dedos
desprendê-lo da minha boca ébria
que a dizer-te se liberta a pouco e pouco
esta alegria. Fosse haver

depois da noite um dia sucessivo
não feito mais do que se permitir
ser tudo para nós e não mover-se
nunca o sentimento de deixar-te

sendo completo porque não termina
todo o amor que fica por fazer. 

Alberto Soares, Escrito para a noite, INCM, p.44



22/05/11

Condição de mulher



Recordava como, no tempo em que era homem, exigia das mulheres que fossem obedientes, castas, perfumadas e primorosamente ataviadas. «Agora vou ter que pagar na minha própria carne esses desejos», reflectiu; «porque as mulheres não são ( a ajuizar pela minha breve experiência de pertença ao sexo) obedientes, castas, perfumadas e primorosamente ataviadas por natureza. Só podem alcançar essas graças, sem as quais não gozam nenhum dos prazeres da vida, mediante a mais enfadonha disciplina. Há o penteado», pensou, «que só por si me vai roubar cada manhã uma hora; há o ver-se ao espelho, mais uma hora; há o espartilho e as rendas; o banho e o pó-de -arroz; há o mudar de vestido, trocando o cetim pela renda e a renda pela seda; há o ser casta todos os dias do ano...». Aqui bateu o pé com impaciência, exibindo uma ou duas polegadas da perna. Um marinheiro empoleirado no mastro, que por acaso olhou para baixo neste instante, sobressaltou-se tão violentamente que perdeu o pé e só por um triz se salvou. «Se ver os meus tornozelos pode custar a vida a uma honesta criatura que com certeza tem mulher e filhos para sustentar, manda a mais elementar humanidade que os traga sempre cobertos», pensou Orlando. As pernas eram, porém, um dos seus maiores encantos. E pôs-se a pensar na bizarra situação a que se chegou quando a mulher é obrigada a cobrir os seus encantos para que um marinheiro se não despenhe do topo de um mastro. «Que os leve a peste!», disse, dando-se conta, pela primeira vez, daquilo que noutras circunstâncias teria aprendido desde criança, ou seja, das sacrossantas responsabilidades da condição de mulher. 

Virginia Woolf, Orlando - uma biografia, Relógio d'Água Editores, p.111-112;  imagem: Dino Valls, Catexis

21/05/11

O cinismo

O cinismo é a arte de ver as coisas como elas são, 
de preferência a como deveriam ser.

Oscar Wilde, Aforismos, Contexto, p.79


15/05/11

E tocará esse piano

Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.


Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.

Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.

Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.

E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.

Juan Ramón Jimenez, Antologia Poética, trad. José Bento,
Relógio D'Água, p.31-32


09/05/11

Escrito no muro

Procura a maravilha.

Onde a luz coalha
e cessa o exílio.

Nos ombros, no dorso,
nos flancos suados.

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.

Ou a sombra espessa.

Na laranja aberta
à língua do vento.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.

Eugénio de Andrade, Obscuro Domínio, Limiar, p.16-17




25/04/11

O gesto criador



Pranto pelo dia de hoje


Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que não podem sequer ser bem descritas.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia,
Círculo de Poesia - Moraes Editores, p.191 

O tempo

O tempo não deseja ser feliz.
Por isso nós o seguimos.

António Osório, Antologia Poética, Quetzal Editores, p.187


25 de Abril

Na manhã da revolução - céu cinzento, dia a ameaçar chuva - não fui trabalhar, como toda a gente. Uma revolução é para isso: para dar feriad...