Daniel Jonas, "Idade da Pedra", Assírio e Alvim, p.12
Daniel Jonas, "Idade da Pedra", Assírio e Alvim, p.12
Não entres como turista no coração de uma mulher
não bebas só um copo de mar ali
não costumam voltar a crescer.
Esta dura crueza de navio
à deriva, seguindo a tempestade,
aguarda essa palavra que inicia
todo um começo sem saber o fim.
Dum silêncio nocturno vem a lume
a força, e um caroço se liberta
de mim, como de um fruto que apodrece
sem saber - por dentro.
Alberto Soares (poema respigado aqui), Alan Villiers (foto)
Há quantos anos convosco vivo
poetas deste mundo e todos os feitios,
como com tudo quanto seja criação humana,
desde as fantasias da carne à contemplação do espaço!
Se vos traduzo para vós em mim,
não é porque vos use para dizer o que não disse,
ou para que digais o que não haveis dito -
- mas para que sejais da minha língua,
aquela a que eu pertenço e me pertence,
e assim nela eu me sinta em todo o mundo e sempre,
por vossa companhia.
Pois para quem haveis escrito
senão para quem vos ame e queira.
Jorge de Sena, "Visão Perpétua", Morais Editores/INCM, 1982, p.108
Li algures que os gregos antigos
não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam
apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu
quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas
gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras
para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus
precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu
próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens
extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas
grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se
inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e
saindo
dos dez tão poucos dedos para
tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que
responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta
comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma
canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com
que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha
paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino,
o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que
eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e
moderna,
os cegos, os temperados, ah não,
que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega.
Herberto Helder, "A faca não corta o Fogo - Súmula & Inédita", Assírio & Alvim, 2008
As casas ardem como ardemas florestas. Por cima delas, outras casascrescem como nascem outrasflorestas. O que se renova pode ser visto comose nada existisse antes dele: as janelasque vemos, fechadas ou abertas, dão paravidas, fechadas ou abertas, que são comotodas as vidas que se passaram por trásde outras janelas, fechadas ou abertas. Eas árvores que nasceram onde outrasárvores arderam deitam as mesmas folhase brilham com as mesmas flores, enquantooutros incêndios não destroem outrascasas e outras florestas. De quenos queixamos, então? Dessa fotografiaem que o fogo apagou o único rostode que nos queríamos lembrar? Desse troncoque abrigou o corpo em busca de uma sombra,depois do amor? E quando olho estascasas que se erguem à minha frente,ou quando passo numa floresta repletade sombras e de perfumes, pergunto o quesucedeu a esses breves instantes queo tempo apagou, no seu curso, e se desfazemem nada quando os procuramos, no gestoinútil de reencontrar esse rosto de que não ficounem a memória, ou na tentação de procurara árvore que acolheu um amor que acreditouser eterno como as flores dessa primavera.Nuno Júdice, "O Coro da Desordem", Publicações D. Quixote, 2019, p.24-25
Ir para onde à tarde a lua nasce Sobre o afastamento da terra Deixar o ajuntamento e o som da fala E subir à aspereza expectante da noite Um...