Li algures que os gregos antigos
não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam
apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu
quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas
gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras
para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus
precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu
próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens
extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas
grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se
inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e
saindo
dos dez tão poucos dedos para
tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que
responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta
comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma
canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com
que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha
paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino,
o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que
eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e
moderna,
os cegos, os temperados, ah não,
que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega.
Herberto Helder, "A faca não corta o Fogo - Súmula & Inédita", Assírio & Alvim, 2008
Aprendi tarde a gostar de HH.
ResponderEliminarE não há dúvida que os vates dessa época, ou são "filhos" de Eugénio ou dele, Herberto...
Bom dia.
Bom dia APS. É dele o primeiro livro de poesia que comprei, tinha eu menos de 20 anos (creio que foi no ano em fui para a faculdade): o 'Passos em Volta', primeira edição, que é diferente das que se seguiram. Nessa altura estava convencida que não gostava de poesia e foi esse livro que me fez mudar de opinião. Curioso, não é?...
EliminarCorrijo: é a 4ª ed., a de 1980. Esta: https://www.arquipelagos.pt/imagem/os-passos-em-volta-herberto-helder-lisboa-1980-portugal/
ResponderEliminarA mim, foi o Nobre que me cativou e convenceu...
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