15/10/25

Vento Frio e Som

Ir para onde à tarde a lua nasce
Sobre o afastamento da terra
Deixar o ajuntamento e o som da fala
E subir à aspereza expectante da noite

Um grito cruzará o desfiladeiro,
A vertente que o traz, quebrará
Sobre quem era e fora - cascavel - 
Caindo na secura do sopé inverso

Uma intenção: reencontrar-se
Progredindo para longe de si
Afastando-se do som difuso
Da controversa substância da pele

Ficar da ver súbito o panorama
A subida da águia ao shaligrama
Aprender com os ventos chiando
Ascendentes como bravos pioneiros

Não haver então ninguém: só falésia
Rumor de regozijo inexprimível
E medo fóssil pervasivo industrioso
E deus bramando sobre a pedra

Daniel Jonas, "Idade da Pedra", Assírio e Alvim, p.12





 

  

On Stream

12/10/25

Não entres como turista no coração de uma mulher

 


Não entres como turista no coração de uma mulher

a tirar fotos
deixando latas de cerveja
procurando só catedrais imensas
e estátuas transparentes

com a mochila cheia de mapas
e a fazer refeições rápidas

há um país
sete cidades
uma cordilheira e um inverno
no coração de uma mulher

não bebas só um copo de mar ali

não entres no avião
apanha o comboio da meia lua
não reveles ali as tuas fotografias numa hora

se não fizer demasiado frio
entra nu

não leves guarda-chuva
e sobretudo não cortes árvores
no coração de uma mulher

não costumam voltar a crescer.



José María Zonta, "Os Elefantes São Contagiosos", Filipe Ribeiro (trad.), Língua Morta, p.27;  
Edward Hopper, "Automat",1927

30/09/25

Criação

 





Esta dura crueza de navio
à deriva, seguindo a tempestade,
aguarda essa palavra que inicia
todo um começo sem saber o fim.

Dum silêncio nocturno vem a lume
a força, e um caroço se liberta
de mim, como de um fruto que apodrece
sem saber - por dentro.

Alberto Soares (poema respigado aqui)Alan Villiers (foto)

26/09/25

ENVOI

 



Há quantos anos convosco vivo
poetas deste mundo e todos os feitios,
como com tudo quanto seja criação humana,
desde as fantasias da carne à contemplação do espaço!
Se vos traduzo para vós em mim,
não é porque vos use para dizer o que não disse,
ou para que digais o que não haveis dito -
- mas para que sejais da minha língua,
aquela a que eu pertenço e me pertence,
e assim nela eu me sinta em todo o mundo e sempre,
por vossa companhia.
Pois para quem haveis escrito
senão para quem vos ame e queira.


Jorge de Sena, "Visão Perpétua", Morais Editores/INCM, 1982, p.108 

 


 

 

 

 






25/09/25

Sete Danças Gregas






Maurice Béjart (coreografia)
Mikis Theodorakis (música)
Giorgio Madia e Marc Hwang (bailarinos) Bejart Ballet Lausanne, Palacio de Congresos, em Madrid (1986)

A paixão grega


Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega.

Herberto Helder, "A faca não corta o Fogo - Súmula & Inédita", Assírio & Alvim, 2008 



07/09/25

Echad Mi Yodea



Ohad Naharin (coreografia),  Batsheva - the Young Ensemble 

Ciclos

 



As casas ardem como ardem
as florestas. Por cima delas, outras casas
crescem como nascem outras
florestas. O que se renova pode ser visto como
se nada existisse antes dele: as janelas
que vemos, fechadas ou abertas, dão para
vidas, fechadas ou abertas, que são como
todas as vidas que se passaram por trás
de outras janelas, fechadas ou abertas. E
as árvores que nasceram onde outras
árvores arderam deitam as mesmas folhas
e brilham com as mesmas flores, enquanto
outros incêndios não destroem outras
casas e outras florestas. De que
nos queixamos, então? Dessa fotografia
em que o fogo apagou o único rosto
de que nos queríamos lembrar? Desse tronco
que abrigou o corpo em busca de uma sombra,
depois do amor? E quando olho estas
casas que se erguem à minha frente,
ou quando passo numa floresta repleta
de sombras e de perfumes, pergunto o que
sucedeu a esses breves instantes que
o tempo apagou, no seu curso, e se desfazem
em nada quando os procuramos, no gesto
inútil de reencontrar esse rosto de que não ficou
nem a memória, ou na tentação de procurar
a árvore que acolheu um amor que acreditou
ser eterno como as flores dessa primavera.

Nuno Júdice, "O Coro da Desordem", Publicações D. Quixote, 2019, p.24-25       

 







25/08/25

Ofício

 


Armazenar sofrimento.

Distribuí-lo depois

Límpido.

 

António Osório, "Antologia Poética", Quetzal Editores, 1994, p.69  





19/08/25

How do I love thee?



How do I love thee? Let me count the ways.
I love thee to the depth and breadth and height
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of being and ideal grace.
I love thee to the level of every day’s
Most quiet need, by sun and candle-light.
I love thee freely, as men strive for right.
I love thee purely, as they turn from praise.
I love thee with the passion put to use
In my old griefs, and with my childhood’s faith.
I love thee with a love I seemed to lose
With my lost saints. I love thee with the breath,
Smiles, tears, of all my life; and, if God choose,
I shall but love thee better after death.

Elizabeth Barrett Browning


PS: em português, no Arpose, tradução de APS aqui


08/08/25

Because we don’t know when we will die, we get to think of life as an inexhaustible well. Yet, everything happens only a certain number of times, and a very small number, really. How many more times will you remember a certain afternoon of your childhood, some afternoon that’s so deeply a part of your being that you can’t even conceive of your life without it? Perhaps four or five times more. Perhaps not even that. How many more times will you watch the full moon rise? Perhaps twenty. And yet it all seems limitless.

Paul Bowles, "The Sheltering Sky"



04/08/25

Ir com a mudança

 "Tens de ir com a mudança, foi o que ele me disse. Ninguém mais ouviu, mas o John disse, de facto, para eu ir com a mudança".

Joan Didion, "O Ano do Pensamento Mágico", Infinito Particular, p.287




31/07/25

A mão invisível do vento roça por cima das ervas. [ À la manière de A. Caeiro ]


A mão 

A mão invisível do vento roça por cima das ervas.

Quando se solta, saltam nos intervalos do verde

Papoilas rubras, amarelos malmequeres juntos,

E outras pequenas flores azúis que se não vêem logo.

Não tenho quem ame, ou vida que queira, ou morte que roube.

Por mim, como pelas ervas um vento que só as dobra

Para as deixar voltar àquilo que foram, passa.

Também por mim um desejo inutilmente bafeja

As hastes das intenções, as flores do que imagino,

E tudo volta ao que era sem nada que acontecesse.

30-1-1921

Poemas de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.) Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1994. 

 - 89.

19/06/25

O Sentimento Fractal

   Aqui, no centro do mundo, uma ordem parece nascer do Caos. Existem padrões na agitação rebelde das coisas, padrões que se repetem em todas as escalas...
    Aqui se descobre a lei milenar da Analogia e a Natureza parece divertir-se a demonstrar paradoxos e a reduzir a Razão ao seu lugar de ferramenta imperfeita.
    Aqui as emoções assumem as qualidades simbólicas do número e o Cálculo dá lugar à Teoria dos Conjuntos... O coração é um ábaco imenso a calcular sentimentos ou um computador analógico recheado de equações transcendentes e fórmulas resolventes de sistemas impossíveis!...
    Aqui é o riso digital da loucura ecoando no vazio de dentro, no centro do Caos, na raiz do mundo. A alma, qual espelho imenso, reflecte resignadamente as mil tonalidades da demência e murmura, como um mago a proferir encantamentos, a equação paramétrica do Homem, dependente do tempo...
   Aqui me encontro, caminhando na lisa excentricidade de uma fita de Möbius, ruminando desesperos na angústia recursiva do eco...
    Aqui, na dimensão fractal do Universo... 

José Eusébio Alpedrinha, "Teias do Silêncio", 2013