03/04/10

A alma dos ricos

Concurso hípico, Lisboa, 1928 - Mário Novais, Biblioteca de Arte-F.C.G.


«Não é raro que as raparigas muito ricas escolham maridos pobres e que as limitem nas ambições. Chama-se a isso voltar ao pão seco, que pode constituir um desejo inspirador nas mulheres.
 O pai das duas meninas (havia também um rapaz, Eduardo) pertencia ainda à classe dos industriais de pano branco que se estendiam pelas margens do rio Ave com uma regular variedade de apresentação. Uns eram ricos com obstinação da consideração social, obtinham um título papalino e faziam-se solitários na sua terra onde o passado modesto lhes pesava como chumbo. Outros, como no caso de Amílcar da Barca, nunca rejeitavam nem os gostos nem as fraquezas, fiéis aos pratos tradicionais e ao pão de milho com chouriço. Educavam tão bem os filhos que se lhes tornavam estranhos.
Contudo o Amílcar da Barca teve o critério romanesco de se casar com uma Silva de Lanhoso, esta de casa apalaçada cujos telhados estavam uma ruína. A ruína dos telhados leva às vezes a alianças inesperadas.
As Silva Lanhoso eram de facto boas mulheres, mas completamente intragáveis quando se tratava de etiqueta. Tinham sempre um moço ao lado que levava o banquinho para os pés, na missa, e a escalfeta para o teatro. Chamavam-lhe o mandarete. Ninguém falava à mesa antes de a Silva se assoar estrondosamente depois de comer a sopa. Não era uma déspota; era um relógio de carrilhão.»

Agustina Bessa-Luís, «O Princípio da Incerteza - A Alma dos Ricos», Guimarães, p. 11

31/03/10

O beijo

O beijo é só uma palavra
escolhida
ao acaso. O que as tintas
encobrem e descobrem
e os pincéis revelam,
mas não nomeiam,
é a ordem
que se pressente
em todas
as nebulosas. Que sempre
a ordem precede
a desordem. E essa
é uma das leis
indeclináveis
do amor. A sua regra
de ouro, que não admite
excepções.

(do livro «As imagens e as legendas», a propósito de
«O beijo» de Gustav Klimt )


28/03/10

Há felizmente o estilo




- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isto. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã, num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida apresenta-se ali como algo... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é a maneira subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade e significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? De uma dessas tremendas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?


27/03/10

Et par manque de brise, le temps s'immobilise



Para APS, porque sim.

Eva



Depois de me ter debatido, depois de ter esgotado os meus grandes ares de insolência, desanimado com a inutilidade dos meus esforços, decidi abandonar o convívio dos homens. Não, não procurei ilhas desertas, já não há. Refugiei-me unicamente junto das mulheres. Bem sabe, elas não condenam verdadeiramente nenhuma fraqueza: tentariam de preferência humilhar ou abater as nossas forças. Eis por que a mulher é a recompensa, não do guerreiro, mas do criminoso. É o seu porto de enseada, é no leito da mulher que ele é geralmente detido. Não será ela tudo o que nos resta do paraíso terrestre?

Albert Camus, A Queda, Editora Livros do Brasil, p.78

25/03/10

Pessoas

«Gosto das pessoas como elas são e dá-me imenso prazer - cada vez mais - ser agradável e gostar de quem não vale grande coisa. De outra forma sentir-me-ia muito só neste mundo.»

Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores, p.218

24/03/10

Como quem se deslocasse pelo tacto nas trevas

«Nessa noite, após a retirada de Rosa Mística, a dor de novo a atacá-la, Ester, e agora sem tréguas. Já no entanto não lhe restava nenhuma dúvida. Que, com ela, os sentimentos, uma coisa lenta sempre, os sentimentos, lenta e labiríntica. Como quem se deslocasse pelo tacto nas trevas. Como quem caminhasse às cegas?
Sentada com a luz apagada e mergulhada em meditação, sentia-se subitamente exaltada, Ester, tal se tivesse febre. Uma exaltação que lhe vinha do facto de a mestra-dos-estudos, nesse passo, estar ainda mais cega que ela. Quem diria? Rosa que se gabava de ler nos olhos das criaturas. Perversidade da minha parte, estou a ser perversa... Vingança. É isso. Estou a vingar-me da mestra. A vingar-me de Macau? A nossa professora consta que vai casar com um oficial, a nossa professora! tresouvira certo dia a uma aluna. E Gandhora: Você sai com militares à noite, é? Extraviado o sono, a professora-de-inglês ora se deitava ora se sentava na cama. As desconfianças de Rosa quanto a Mr.Hó. E Mr. Hó afinal... Os seus chás com o chinês rico nada mais que um disfarce, um despiste. E tudo por mera casualidade. Pois, com ela, sentimentos e acções igualmente, tudo sem nenhum pé, sem nenhuma previsão. O contrário do que se dava com a vizinha de quarto, Xiao toda propósitos, toda proporções. Assim, porque a professora chinesa, semana sim semana não, ia visitar o padrinho a Hong Kong, o colégio inteiro ciente de que era o padrinho e que devia ser visitado. Xiao Hé Huá e a sua aura de coerência e de equilíbrio. A sua pura personalidade chinesa: confuciana? Os chineses acreditando que àquilo que inevitavelmente tinha de ser correspondia outro aquilo. Assim sobre um bom repasto um solene arrotar, e nos dia de jejum borboletas no estômago. Ela, no entanto, Ester... À toa, ando por aqui à toa, ando ao deus-dará. Deus? Mas teria Deus algum cabimento nesses embuços, nesses embustes? Deus era a paz e a paz jamais provinha de perfídias. Senhor, o que eu não daria para receber a paz! Graças dessas, contudo, exigiam renúncia. Mais que renúncia, destemor. Eu amanhã a sair à rua sem nenhuma reserva. A desafiar Macau, amanhã. Aceitando-me, eu, reconhecendo-me, em Macau. Amanhã...»


21/03/10

Primavera


Spring

Sound the flute!
Now it's mute.
Birds delight
Day and night;
Nightingale
In the dale,
Lark in sky.
Merrily,
Merrily, merrily, to welcome in the year.

Little boy,
Full of  joy;
Little girl,
Sweet and small;
Cock does crow,
So do you;
Merry voice,
Infant noise,
Merrily, merrily, to welcome in the year.

Little lamb,
Here I am;
Come and lick
My white neck;
Let me pull
Your soft wool;
Let me kiss
Your soft face:
Merrily, merrily, we welcome in the year.

William Blake, The Selected Poems of, The Wordsworth Poetry Library, p.64


Com agradecimento a APS, que me abriu a «porta».

Domingo

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...