21/04/13

6 motivos para 1 cenário

O melro negro que, do mármore branco, vai para a chaminé.
Uma leitosa neblina sobre o rio.
A gaivota sobrevoando, alta.
Um fiozinho de música que vai pela manhã, como uma voz sem sílabas.
Alguém que se debruça na janela, para ver o rio.
O melro que levanta, em direcção ao dia.


Alberto Soares, aqui

03/03/13

O futuro

Aos domingos, iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
Aos pares,
Dando-nos ares
De pessoas invulgares,
Aos domingos iremos ao jardim.
Diremos, nos encontros casuais
Com outros clãs iguais,
Banalidades rituais,
Fundamentais.
Autómatos afins,
Misto de serafins
Sociais
E de standartizados mandarins,
Teremos preconceitos e pruridos,
Produtos recebidos
Na herança
De certos caracteres adquiridos.
Falaremos do tempo,
Do que foi, do que já houve...
E sendo já então
Por tradição
E formação
Antiburgueses
- Solidamente antiburgueses -,
Inquietos falaremos
Da tormenta que passa
E seus desvários

Seremos aos domingos, no jardim,
Reaccionários.

Reinaldo Ferreira, Nunca mais é sábado - Antologia de Poesia Moçambicana
org. e prefácio de Nelson Saúte, ed. Dom Quixote, p. 120



09/12/12

Many names

Quando considero a minha vida fico apavorado ao achá-la informe. A existência dos heróis, aquela que nos contam, é simples: vai direita ao fim como uma seta. E a maioria dos homens gosta de resumir a sua vida num preceito, por vezes uma jactância ou numa lamentação, quase sempre numa recriminação; a sua memória fabrica-lhes complacentemente uma existência explicável e clara. A minha vida tem contornos menos firmes. Como sucede frequentemente, é talvez o que não fui que a define com maior justeza: bom soldado, mas não um grande homem de guerra; amador de arte, mas não aquele artista que Nero julgou ser, ao morrer; capaz de crimes, mas não carregado de crimes.
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, trad. de Maria Lamas, Ulisseia, p.25



01/11/12

Evolução da alma

Tudo flui

Para as almas, a morte é transformarem-se em água; 
para a água, a morte é transformar-se em terra; 
pois a água tem origem na terra, e a alma na água.

Heraclito,
  in HÉLADE Antologia da Cultura Grega
org. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Guimarães Editores, 10.ª ed. p.152 e 153



17/09/12

Paciência

De mastigar os ossos nas sílabas espessas
este cão amargo rói os dias
sob o peso da chuva com a morte
por entre os lábios o marfim das pedras
(...)

Alberto Soares, Escrito Para a Noite



12/08/12

Os deuses

Os deuses são felizes.

Vivem a vida calma das raízes.

Seus desejos o Fado não oprime,

Ou, oprimindo, redime

Com a vida imortal

Não há sombras ou outros que os contristem.

E, além disto, não existem…

 Ricardo Reis



10/06/12

Mudar de vida

Solúvel e insolúvel este povo.
Na memória dos outros e na sua mesma
.

Jorge de Sena, Antologia Poética, Guimarães, p.226



Glória

Um dia se verá que o mundo não viveu um drama.

Todas estas batalhas, todos estes crimes,
todas estas crianças que não chegaram a desdobrar-se em carne viva
e de quem, contudo, fizeram carne viva logo morta,
todos estes poetas furados por balas
e todos os outros poetas abandonados pelos que
nem coragem tiveram de matar um homem,
toda esta mocidade enganada e roubada
e a outra que morreu sabendo que a roubavam,
todo este sangue expressamente coalhado
à face íntegra da terra,
tudo isto é o reverso glorioso do findar dos erros.

Um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer.

Jorge de Sena
, Antologia Poética, Guimarães, p.56




(...)
A História não olha a quem fica no meio
E o que foi é de quem fôr

26/05/12

Para APS, que gosta de pássaros

... DE PASSAREM AVES
                                           À memória de Sá de Miranda


Das aves passam as sombras,
um momento, no chão, perto de mim.
No tardo Verão que as trouxe e as demora, 
por que beirais não sei
onde se abrigam piando
como ao passar chilreiam.


Um momento só. Rápidas voam!
E a vida em que regressam de outras terras
não é tão rápida: fiquei olhando
as sombras não, mas a memória delas,
das sombras não, mas de passarem aves.


Jorge de Sena, Antologia Poética, Guimarães, p.63




Altifalantes


Altifalam vozes
nos salões nas ruas nas praças
nos ouvidos nos túmulos
martelam esmurram gritam palmejam
comunicam urram.
Conferências discursos aspectos e palestras
lições homenagens notas do dia e da semana
et nunc et semper.
Discursos almicos encomendados traduzidos
decorados divertidos ambaquistas.
Palavras dactilodecoradas improvisos ponderados
palavras dinâmicas magnéticas.
Altifam palavras.
Hora de camaleões e altifalantes.


Mendes de Carvalho, Camaleões e Altifalantes,
Guimarães Editores - Colecção Poesia e Verdade, p.15

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...