11/09/10

Glosa à chegada do Outono

O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

1958

Jorge de Sena, Versos e alguma prosa de
prefácio e selecção de textos de Eugénio Lisboa,
Co-edição da arcádia e Moraes, p. 56


Com envoiMR

09/09/10

Dentro de mim

Abarco todo o horizonte
Dentro de mim há só água,
água estagnada, dos charcos
represos da minha mágoa.

Tenho tudo nos meus olhos,
as cores todas, e ponho
um leve acento de angústia
nas margens tristes do sonho.

Dentro de mim só há sombra.
O que possa acontecer
vai rasgando espaços brancos
nas fronteiras do meu ser.

Albano Martins, Assim são as algas, Campo das Letras, p.24

05/09/10

O paralítico

Acontece. Será sempre assim?
O meu espírito é um rochedo,
sem dedos para me segurar, sem voz;
é o meu Deus o pulmão de aço,

que me vem amar, que bombeia
os meus dois
sacos de pó, que oscilam para dentro e para fora,
e, assim, não me permite

recair
enquanto o dia lá fora desliza como uma fita perfurada.
A noite traz violetas,
tapeçarias de olhos,

luzes,
os serenos e anónimos
conversadores: "Estás bem?"
o peito engomado, inacessível.

Como um ovo morto, estou deitado
intacto
num intacto mundo que não posso tocar;
no branco, tenso

tambor do leito onde adormeço
fotografias visitam-me...
A minha mulher, morta e estendida, com as suas peles de 1920,
a boca cheia de pérolas,

duas raparigas,
estendidas como ela, que murmuram "Somos tuas filhas".
As águas paradas
envolvem-me os lábios,

os olhos, o nariz e os ouvidos,
um transparente
celofane que não consigo romper.
Apoiada nas minhas costas nuas

sorrio como um buda, todas
as necessidades, e desejos
caindo de mim como anéis
acariciando as suas luzes.

A garra
da magnólia,
embriagada pelo seu aroma,
nada pede à vida.

Sylvia Plath, Pela Água,
tradução de Maria de Lourdes Guimarães, Assírio & Alvim, p.47-48


28/08/10

Oferecendo de beber a Pei Ti

Provável auto retrato de Wang Wei


Vem beber um copo e descansar,
os homens mudam sempre, como as ondas do mar.
Nós dois temos envelhecido juntos,
apesar dos reveses, continuamos vivos.
O primeiro a habitar uma casa de portões escarlates
pode sorrir, ao olhar os outros de chapéu na mão.
Tu sabes, basta um pouco de chuva
para reverdecer a erva dos caminhos.
O vento da Primavera é ainda frio
mas os botões das flores quase desabrocharam.
Porquê tanta pergunta, tanta luta,
os negócios do mundo, as nuvens flutuantes?
Descansa, deixa fluir a vida,
e vem jantar comigo.

Wang Wei, Poemas de Wang Wei, tradução, prefácio e notas de António Graça de Abreu, Instituto Cultural de Macau, 1993, p.170

24/08/10

Curva cega

é sempre a mesma curva

cega, neste troço de pedra lascada,

não há como escapar

às primeiras chuvas

ao piso escorregadio dos olhos,

despiste, falésia mortal,

o coração não entende

sinais vermelhos.

Renata Correia Botelho, 
in revista Telhados de Vidro nº 2, p. 39, Averno, Lisboa, Maio 2004, 
respigado aqui e com agradecimento a APS, que recomendou.


20/08/10

A escrita (novamente)

Escrever

Se eu pudesse havia de... de...
transformar as palavras em clava!
havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressoante!
Sem música, como um gesto,
uma pancada brusca e sóbria.
Para quê,
mas para quê todo o artifício
da composição sintáctica e métrica,
este arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras: pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo!
Vejo, admiro, desejo?
Ou não... ou sim.
E, com isto, continuando...

E gostava,
para as infinitamente delicadas coisas do espírito
(quais? mas quais?)
em oposição com a braveza
do jogo da pedrada,
da pontaria às coisas certas e negadas,
gostava...
de escrever com um fio de água!
um fio que nada traçasse...
fino e sem cor... medroso
Ó infinitamente delicadas coisas do espírito...
Amor que não se tem,
desejo dispersivo,
sofrimento indefinido,
ideia incontornada,
apreços, gostos fugitivos...
Ai, o fio da água,
o próprio fio da água poderia
sobre vós passar, transparentemente...
ou seguir-vos, humilde e tranquilo?

Irene Lisboa (João Falco), Folhas Soltas da Seara Nova (1929-1955), Antologia, Prefácio e Notas de Paula Morão, INCM, p.132-133

13/08/10

A escrita (ainda)

A palavra é m espartilho das ideias - diz-se. É o pior (...) Agora mesmo eu estou aqui, difuso neste ambiente de fumo de cigarro, cansado, e tenho flores na secretária, cartas, retratos, o candeeiro apagado, livros, tinta, pés frios, uma carroça martela a calçada - e tudo é presente ao mesmo tempo e tenho uma ideia sumária sobre tudo, e há gente na vizinhança falando, e portas cá em casa batendo, e um garoto assobia lá fora, mais carroças, um pássaro num telhado e o céu azul, respiro e repouso. Tudo isto é exacto e simultâneo. Como descrevê-lo porém sem lhe destruir a interpenetração e a verdade de ser simultâneo? 

Vergílio Ferreira, Diário Inédito, Bertrand Editora, p.26

12/08/10

Home

A escrita

a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada

(...)

05/08/10

O ódio


James Ensor, Ensor with masks

Je ne hais personne; - mais la haine noircit mon sang et brûle cette peau que les annés furent incapables de tanner. Comment dompter, sous des jugements tendres ou rigoureux, une tristesse hideuse et un cri d'écorché? (...) E. M. Cioran, Précis de Décomposition, Gallimard, p.108

01/08/10

Ressurgiremos


 
Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos
E em Delphos centro do mundo
Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta

Ressurgiremos ali onde as palavras
São o nome das coisas
E onde são claros e vivos os contornos
Na aguda luz de Creta

Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo
São o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a terra de frente
Na luz limpa de Creta

Pois convém tornar claro o coração do homem
E erguer a negra exactidão da cruz
Na luz branca de Creta.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia, Círculo de Poesia,
Moraes Editores, p.179

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...