01/01/14

O princípio

Vejo uma objecção a qualquer esforço para melhorar a condição humana: é que os homens são talvez indigno dele. Mas repilo-a sem dificuldades: enquanto o sonho de Calígula se mantiver irrealizável e todo o género humano se não reduzir a uma única cabeça oferecida ao cutelo, teremos que o tolerar, conter e utilizar para os nossos fins; sem dúvida que o nosso interesse será servi-lo. O meu processo baseava-se numa série de observações feitas desde há muito em mim próprio: toda a explicação lúcida me convenceu sempre, toda a delicadeza me conquistou, toda a felicidade me tornou moderado. E nunca prestei grande atenção às pessoas bem intencionadas que dizem que a felicidade excita, que a liberdade enfraquece e que a humanidade corrompe aqueles sobre quem é exercida. Pode ser: mas, no estado habitual do mundo, é como recusar a alimentação necessária a um homem emagrecido com receio de que alguns anos depois ele possa sofrer de superabundância. Quando se tiver diminuido o mais possível as servidões inúteis, evitado as desgraças desnecessárias, continuará sempre, para manter vivas as virtudes heróicas do homem, a longa série de verdadeiros males, a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não correspondido, a amizade recusada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta que os nossos projectos e mais enevoada que os nossos sonhos: todas as infelicidades causadas pela divina natureza das coisas.

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, trad. de Maria Lamas, Editora Ulisseia, p.98-99 







04/08/13

Nota breve

Mergulho no desespero de um escritor que não escreve.

Marguerite Yourcenar, Apontamentos sobre as Memórias de Adriano,
Ulisseia, 1983, p.252



21/04/13

6 motivos para 1 cenário

O melro negro que, do mármore branco, vai para a chaminé.
Uma leitosa neblina sobre o rio.
A gaivota sobrevoando, alta.
Um fiozinho de música que vai pela manhã, como uma voz sem sílabas.
Alguém que se debruça na janela, para ver o rio.
O melro que levanta, em direcção ao dia.


Alberto Soares, aqui

03/03/13

O futuro

Aos domingos, iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
Aos pares,
Dando-nos ares
De pessoas invulgares,
Aos domingos iremos ao jardim.
Diremos, nos encontros casuais
Com outros clãs iguais,
Banalidades rituais,
Fundamentais.
Autómatos afins,
Misto de serafins
Sociais
E de standartizados mandarins,
Teremos preconceitos e pruridos,
Produtos recebidos
Na herança
De certos caracteres adquiridos.
Falaremos do tempo,
Do que foi, do que já houve...
E sendo já então
Por tradição
E formação
Antiburgueses
- Solidamente antiburgueses -,
Inquietos falaremos
Da tormenta que passa
E seus desvários

Seremos aos domingos, no jardim,
Reaccionários.

Reinaldo Ferreira, Nunca mais é sábado - Antologia de Poesia Moçambicana
org. e prefácio de Nelson Saúte, ed. Dom Quixote, p. 120



09/12/12

Many names

Quando considero a minha vida fico apavorado ao achá-la informe. A existência dos heróis, aquela que nos contam, é simples: vai direita ao fim como uma seta. E a maioria dos homens gosta de resumir a sua vida num preceito, por vezes uma jactância ou numa lamentação, quase sempre numa recriminação; a sua memória fabrica-lhes complacentemente uma existência explicável e clara. A minha vida tem contornos menos firmes. Como sucede frequentemente, é talvez o que não fui que a define com maior justeza: bom soldado, mas não um grande homem de guerra; amador de arte, mas não aquele artista que Nero julgou ser, ao morrer; capaz de crimes, mas não carregado de crimes.
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, trad. de Maria Lamas, Ulisseia, p.25



01/11/12

Evolução da alma

Tudo flui

Para as almas, a morte é transformarem-se em água; 
para a água, a morte é transformar-se em terra; 
pois a água tem origem na terra, e a alma na água.

Heraclito,
  in HÉLADE Antologia da Cultura Grega
org. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Guimarães Editores, 10.ª ed. p.152 e 153



17/09/12

Paciência

De mastigar os ossos nas sílabas espessas
este cão amargo rói os dias
sob o peso da chuva com a morte
por entre os lábios o marfim das pedras
(...)

Alberto Soares, Escrito Para a Noite



12/08/12

Os deuses

Os deuses são felizes.

Vivem a vida calma das raízes.

Seus desejos o Fado não oprime,

Ou, oprimindo, redime

Com a vida imortal

Não há sombras ou outros que os contristem.

E, além disto, não existem…

 Ricardo Reis



10/06/12

Mudar de vida

Solúvel e insolúvel este povo.
Na memória dos outros e na sua mesma
.

Jorge de Sena, Antologia Poética, Guimarães, p.226



Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...