Pantha rei

 


Nenhum homem consegue banhar-se duas vezes no mesmo rioPorque não é o mesmo homem, nem é o mesmo rio. Tudo flui.  

Heraclito, em versão livre…

In Praise of Shadows

 


«A Japanese room might be likened to an inkwash painting, the paper-panelled shoji being the expanse where the ink is thinnest, and the alcove where it is darkest. Whenever I see the alcove of a tastefully built Japanese room, I marvel at our comprehension of the secrets of shadows, our sensitive use of shadow and light. For the beauty of the alcove is not the work of some clever device. An empty space is marked off with plain wood and plain walls, so that the light drawn into it forms dom shadows within emptiness. There is nothing more. And yet, when we gaze into the darkness that gathers behind the crossbeam, around the flower vase, beneath the shelves, though we know perfectly well it is mere shadow, we are overcome with the feeling that this small corner of the atmosphere there reigns complete and utter silence; that here in the darkness immutable tranquillity holds sway. The 'mysterious Orient' of which Westerners speak probably refers to the uncanny silence of this dark places. And even we as children would feel an inexpressible chill as we peered into the depths of an alcove to which the sunlight had never penetrated. Where lies the key to this mystery? Ultimately it is the magic of shadows, Were the shadows to be banished from its corners, the alcove would in that instant revert to mere void.»

«Why should this propensity to seek beauty in darkness be so strong only in Orientals? The West too has known a time when there was no electricity, gas, or petroleum, and yet so far as I know the West has never been disposed to delight in shadows. Japanese ghosts have traditionally had no feet; Western ghosts have feet, but are transparent. As even this trifle suggests, pitch darkness has always occupied our fantasies, while in the West even ghosts are as clear as glass. This is true to of our household implements: we prefer colors compounded of darkness, they prefer colors of sunlight. And of silver and copperware: we love them for the burnish and patina, which they consider unclean, insanitary, and polish to a glittering brilliance. They paint their ceilings and walls in pale colors to drive out as many of the shadows as they can. We fill our gardens with dense plantings, they spread out a flat expanse of grass.

But what produces such differences in taste? In my opinion it is this: we Orientals tend to seek our satisfactions in whatever surroundings we happen to find ourselves, to content ourselves with things as they are; and so darkness causes us no discontent, we resign ourselves to it as inevitable. If light is scarce then light is scarce; we will immerse ourselves in the darkness and there discover its own particular beauty. But the progressive Westerner is determined always to better his lot. From candle to oil lamp, oil lamp to gaslight, gaslight to electric light - his quest for a brighter light never ceases, he spares no pins to eradicate even the minutest shadow.» 

Junichiro Tanizaki, "In Praise of Shadows", Thomas J. Harper & Edward G. Seidenstcker (trad.), Penguin Random House, p. 39-40 e 62-64      

Alexis de Tocqueville - Cadernos de viagem

 


«[S]i je vais plus loin encore, et que, parmi ces traits divers, je cherche le principal et celui qui peut résumer presque touts les autres, je découvre que, dans la plupart des opérations de l'esprit, chaque Américain n'en appelle qu'à l'effort individuel de sa raison. L'Amérique est donc l'un des pays du monde où l'on étudie le moins et où l'on suit le mieux les préceptes de Descartes. Cela ne doit pas surprendre.»

«Les passions qui agitent le plus profondément les Américains sont des passions commerciales et non des passions politiques, ou plutôt ils transportent dans la politique des habitudes du négoce. Ils aiment l'ordre, sans lequel les affaires ne sauraient prospérer, et ils prisent particulièrement la regularité des moeurs, qui fonde les bonnes maisons; ils préfèrent le bons sens qui crée les grandes fortunes au génie que souvent les dissipe; les idées générales effraient leurs esprits accoutumés aux calculs positifs, et parmi eux, la pratique est plus en honneurs que la théorie.»

«Ce n'est pas qu'aux États-Unis comme ailleurs il n'y ait des riches; je ne connais même pas de pays où l'amour de l'argent tienne une plus large place dans le coeur de l'homme et où l'on professe um mépris plus profond pour la théorie de l'égalité permanente des biens. Mais la fortune y circule avec une incroyable rapidité, et l'expérience apprend qu'il est rare de voir deux générations en recueillir les faveurs.» 

Nicolas Baverez, "Le Monde selon Tocqueville - Combats pour la liberté", Éditions Tallandier, 2021, p.82-83  

      

A «Planície Selvagem»


«A Fronteira Militar Habsburgo [séc. XVI], que tinha começado nas zonas eslavas e croata, fazia parte de uma fronteira que se estendia através da Hungria e até à Transilvânia. No caminho, atravessava a Planíce Húngara, onde comunidades privilegiadas de guardadores de gado ou "heyducks" (...) cumpriam as funções de pastores e guardas fronteiriços ao mesmo tempo. Contudo, a fronteira otomana na Europa Central era ainda mais extensa. Dava a volta à Transilvânia e aos principados romenos vizinhos da Valáquia e da Moldávia, que, tal como a Transilvânia, eram Estados vassalos dos otomanos, seguindo depois para leste, para dentro da estepe a norte do mar Negro. Ao longo de milhares de quilómetros, a fronteira otomana na Europa Central percorria a orla da Polónia e da Lituânia, até se extinguir a leste de Kyiv, para lá dos troços inferiores do rio Dniepre.

Enquanto a fronteira entre a Hungria e a Croácia dos Habsburgos e o Império Otomano estava assinalada por uma densa linha de fortificações, não havia nada semelhante no lado polaco e lituano. Havia fortalezas em pontos estratégicos em travessias de rios. Contudo, à semelhança de Kamianets-Podilskyu, acima do desfiladeiro de Smortrych, e de Khotyn, no Dniestre (ambos actualmente na Ucrânia), eram muitas vezes de conceção desordenada e pouco sofisticada, com muralhas altas de pedra, que se tornavam vulneráveis ao fogo de artilharia.(...)

Os turcos otomanos, os seus aliados tártaros da Crimeia e os soberanos da Polónia e da Lituânia confrontavam-se agora entre si na estepe a norte do mar Negro. Depois de alguma negociação, em finais da década de 1530, em torno da fixação de uma fronteira, os lados rivais desistiram, admitindo que, pelo contrário, haveria um espaço aberto, de quase mil quilómetros de largo, onde ninguém governaria oficialmente. Os turcos chamavam a este espaço "terra desolada", mas para os polacos e lituanos era a "Planície Selvagem" (dzikie pola). De acordo com um relato coevo, só a faixa de terra entre os últimos bastiões lituanos em Bratslav e Cherkasy e a costa do mar Negro perfazia seis dias de viagem, atravessando uma infidável pradaria que não era interrompida por florestas, pântanos ou colinas. (...)

(...) Apesar de tanto a Polónia como os khans da Crimeia estarem frequentemente em paz, tendo na Rússia um inimigo comum, era constante a passagem de flibusteiros tártaros e de grupos de assalto pela "Planície Selvagem".(...)

(...) a "Planície Selvagem também tinha a sua própria população. No século XV, os seus povos eram sobretudo pastores tártaros, mas a que posteriormente se acrescentaram agricultores vindos da Polónia e da Lituânia, mercadores que queriam evitar impostos e pescadores e guardadores de gado que operavam também como guerreiros e mercenários. As pessoas da planície viviam sobretudo em vilas fortificadas ou em grandes campos chamados sichi, mas quando era seguro desciam o rio Dniepre para caçar martas, apanhar esturjões e recolher favos de mel. O banditismo era um biscate lucrativo e os comboios de comerciantes expostos rendiam ricas safras. Um visitante relatou as humildes cabanas que encontrou na Planície Selvagem, mas registou que, no interior, estavam repletas de "sedas dispendiosas, pedras preciosas, peles de marta-zibelina e outras peles, e especiarias".

De finais do século XV em diante, os bandos armados que operavam na Planície Selvagem eram designados por cossacos, palavra derivada do túrquico qazaq, que significava "homem livre", mas era um termo impreciso, aplicando-se amiúde a qualquer pessoa que vivesse nestes espaços abertos da estepe. Durante o século XVI, o número de cossacos aumentou com um novo influxo de camponeses, que começaram a arar as terras que de resto estavam vazias e por cultivar. De acordo com um observador lituano, vieram "numa grande onda até ao Dniepre e seus afluentes; há aí pequenas cidades populosas e muitas aldeias, onde eles nadam, velejam, pescam e caçam desde a infância. Muitos deles fogem dos pais, da servidão e do trabalho árduo, ou do castigo e dos grilhões de ferro".(...)

Os cossacos eram um problema para todos os seus vizinhos. Não apenas atacavam comboios de transporte de mercadorias na estepe, como também faziam assaltos em territórios tão longíquos como a Transilvânia e a Hungria. Os cossacos tinham a sua própria frota de chaikas, ou "gaivotas", que atacavam embarcações comerciais no mar Negro e em portos costeiros, alcançando inclusivamente os subúrbios de Istambul. (...) Contudo, os cossacos também podiam ser úteis. Com uma poderosa infantaria de mosqueteiros e fortificações móveis de madeira, bloqueavam o avanço de exércitos sobre a Polónia e a Lituânia vindos do sul. Acresce ainda que os cossacos providenciavam uma reserva de combatentes que os reis da Polónia podiam colocar em toda a Europa Central e usar nas suas guerras contra a Rússia..(...)

(...) comunidades livres de cossacos viviam nas zonas mais remotas da Planície Selvagem, com grande destaque para o Sichs de Zaporíjia, que significa "campo abaixo dos rápidos", neste caso do rio Dniepre. Apesar de ficarem tecnicamente situados na província de Kyiv da Polónia, os cossacos de Zaporíjia eram uma comunidade com governo autónomo ou uma república cossaca, com uma população de cerca de cem mil pessoas, que sustentava uma elite militar. Embora a autoridade pertencesse nominalmente a um conselho cossaco, o comandante supremo era quem detinha mais poder, mas apenas enquanto mantivesse a confiança dos seus guerreiros. O governo cossaco do Baixo Dniepre era, nas palavras de um historiador, "uma ditadura temperada por intervenção da populaça". (...)

(...) [Bohdan] Khmelnytsky [o hetman dos cossacos de Zaporíjia] visava estabelecer um hermanato semi-independente na Ucrânia oriental (...). Contudo, em 1651, o rei polaco derrotou as suas forças em Berestechko, no que foi provavelmente a maior batalha terrestre na Europa do século XVII. Três anos depois, Khmelnytsky voltou-se para a Rússia, colocando os cossacos à disposição do czar, em troca de Moscovo pagar a subsistência de sessenta mil cossacos, pertencentes ao Sich de Zaporíjia. Deste momento em diante, os czares trataram Kyiv e toda a margem esquerda do Dniepre como se lhes pertencesse, acrescentando então ao título de Czar de Toda a Rússia as palavras "e da Pequena Rússia", sendo este o nome que devam à Ucrânia. O Tratado de Andrusovo, de 1667, entre a Polónia e a Rússia consolidou o controlo russo de Kyiv e de uma grande parte da Ucrânia oriental.»

Martyn Rady, «Uma Nova História da Europa Central - Os Reinos do Meio", Bertrand Editora, p. 260-268                      

Aguardo, equânime, o que não conheço —

Aguardo, equânime, o que não conheço —

Meu futuro e o de tudo.

No fim tudo será silêncio, salvo

Onde o mar banhar nada.

13-12-1933

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. 




Grow up

«Most people don’t grow up. It’s so damn difficult. What happens is most people get older. That’s the truth of it. They honor their credit cards. They find parking spaces. They marry. They have the nerve to have children, but they don’t grow up. Not really. They get older, but to grow up costs the earth, the earth. It means you take responsibility for the time you take up and the space you occupy. Grow up.” 
Maya Angelou




The Blue Nile - From A Late Night Train

Cantiga X

Até quando me tereis
N'esta dor que por vos quis?
Os serviços que vos fiz
Quando mos perdoareis?

Não ser vosso não é em mim.
Isto quereis mo acoimar?
Pera a alma, vossa sem fim?
Se me tanto mal fazeis
Por serviços que vos fiz,
O bem que vos quero e quis, 
Quando mo perdoareis?

Francisco de Sá de Miranda


«HÁ UMA LIGAÇÃO SECRETA entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento», escreve Milan Kundera, no seu romance A Lentidão. Ao ler esta frase, identifico-me com o seu texto.

Kundera descreve um homem que caminha por uma rua, tentando lembrar-se de uma coisa que esqueceu. Nesse momento, diminui automaticamente a velocidade. Um outro homem, que está a tentar esquecer-se de uma experiência desagradável que acabou de ter, faz precisamente o oposto: aumenta o ritmo da sua passada sem pensar duas vezes, como se quisesse fugir daquilo que acabou de sentir.

Kundera exprime e reformula esses exemplos por meio da matemática existêncial e de duas equações: «O grau de lentidão é directamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é directamente proporcional à intensidade do esquecimento.»

Erling Kagge, A Arte de Caminhar, trad. de Miguel de Castro Henriques, Quetzal Editores, p.51  

Ode



We are the music-makers,
And we are the dreamers of dreams,
Wandering by lone sea-breakers
And sitting by desolate streams;
World losers and world forsakers,
On whom the pale moon gleams:
Yet we are the movers and shakers
Of the world for ever, it seems.
With wonderful deathless ditties
We build up the world’s great cities.
And out of a fabulous story
We fashion an empire’s glory:
One man with a dream, at pleasure,
Shall go forth and conquer a crown;
And three with a new song’s measure
Can trample an empire down.
We, in the ages lying
In the buried past of the earth,
Built Nineveh with our sighing,
And Babel itself with our mirth;
And o’erthrew them with prophesying
To the old of the new world’s worth;
For each age is a dream that is dying,
Or one that is coming to birth.





'Dreamers of Dreams' from LIGHT COLOUR SOUND on Vimeo.

O eremita viajante

foto respigada aqui


176

Na era Jôkio, durante a oitava lua, deixei a minha modesta casa junto ao rio. O vento era muito frio.

O vento rasga-me o corpo
até ao coração -
que tempo este!

208

Deixando as sandálias num lugar e o saco num outro, mas ainda viajando quando o ano termina.

quando o ano está a acabar
agarro no meu chapéu
e calço as minhas sandálias de palha

Matsuo Bashô, O eremita viajante [haikus - obra completa], organização e versão portuguesa Joaquim M. Palma, Assírio & Alvim, p. 95 e 105