A culpa
«(...) nós trazemos na alma a bomba e o problema está em alguém fazer lume para a rebentar. (...) Agora pergunto - se escolheram a maldição e alguém faz lume, quem é o culpado dela rebentar? Como é que um tipo é culpado de trazer uma bomba na alma se foi outro que a fez explodir? E como é que é culpado o tipo que fez o lume, se a bomba não era dele? Qual é a sequência da causa/efeito? Mónica, minha querida, eu posso perfeitamente dizer que a causa, que é o lume, está depois do efeito, que é a bomba. Mas já explico melhor, se valer a pena e não expliquei bem. A minha ideia agora é que o limite de tudo é o incognoscível. Mas temos de nos ir governado, como pudermos para não darmos em doidos e haver ordem na vida. A verdade de tudo há-de esclarecer-se no sem-fim. Mas temos de ser razoáveis para ir vivendo. Admitamos para já que o culpado é o que faz lume». [Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, pág.187 e 188]
«A melhor maneira de fugir é ficar parado.
É a fuga da presa que engrandece o caçador. O ficar imóvel é o mais astuto modo de enfrentar o predador: deixar de ter dimensão, converter-se em areia no deserto. Desaparecer para fazer o outro se extinguir.
A melhor maneira de mentir é ficar calado.»
[Mia Couto in «O Outro pé da Sereia»]
A melhor maneira de mentir é ficar calado.»
[Mia Couto in «O Outro pé da Sereia»]
Conselho do avô
Ante o frio,
faz com o coração
o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o.
Quanto mais nu,
mais ele encontrará
o único agasalho possível
- um outro coração.
[Mia Couto, «A Chuva Pasmada»]
faz com o coração
o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o.
Quanto mais nu,
mais ele encontrará
o único agasalho possível
- um outro coração.
[Mia Couto, «A Chuva Pasmada»]
O criador e a criatura
«Tive de esclarecer a amável estranheza de Q. sobre o meu gosto de não ser conhecida.
Gosto e utilidade!
Mas não esclareci nada.
Tratava-se de atitudes literárias.
Escrever assim como escrevo, sem qualquer ambição de notoriedade, parece-me extraordinariamente útil. Mas não o sei pôr em liguagem clara! Por isso me embrulhei em evasivas. Desnorteei Q., que com a sua galantaria de lisboeta e de letrado, uma galantaria muito especial, me convidava a aparecer... Não sei onde, nem como.
Eu suponho, em boa verdade, que os anonimatos, que a folga e a inteligência dos anonimatos, se não podem definir bem. Que por si se justificam. Um anonimato é vital e elementar, espontaneamente útil; cobre as necessidade de cada um que o usa, esporádicas ou permanentes. Mas há quem tome o anonimato dos artistas por uma espécie de tarrafias, de gracinhas, de jogo ou de vaidade... E sê-lo-à!
A mim, porém, qualquer coisa de mais grave e mais indeterminada me tem levado a adoptar o anonimato, os pseudónimos. Talvez um subtil espírito utilitário, de defesa. De inversão da arrogância, da combatividade, também. De timidez, ou de fuga à responsabilidade intelectual, ainda... Não posso precisar perfeitamente o que seja! Eu julgo ter ainda sobre tudo isto, levemente contingente e exterior, a fugir-lhe... uma noção de que à obra de arte, reservada, independente, se pode ligar toda a indeterminação que lhe apraza, que lhe quadre!
Que significa um nome de autor? Nada! À roda destas coisas ligeiras que eu aproveito para meus temas literários, porque não há-de flutuar um dos meus nomes de ocasião? Tanto faz que seja X o protagonista, como X o seu explorador...
A literatura teve sempre muito de aberrativa, de fantasista. Nomes, pseudónimos, têm absolutamente o mesmo valor das figuras e das localidades. Não valorizam as obras.
E sendo a minha análise sempre tão cingida ao passageiro, sendo uma espécie de exploração da rápida eventualidade, não poderá admitir, com sofrível elegância, com propriedade, a variedade dos pseudónimos?
Este meu escrever sobre 'nadas', creio que até me chega a dar uma absoluta indiferença pelas 'categorias' literárias! Me desinteressa de todo o rang e classe... Me inquina cada vez mais de uma corajosa e perversa paixão de liberdade.
Os pseudónimos não me encobrem dos profissionais das letras, naturalmente!
Mas o mundo deles não é o meu...
O meu, o que por mim se interessa, com boa ou ruim humanidade, não é de letrados nem de artistas, nem sequer de gente de boa sociedade. É de gente de letras grossas! Grosseira, talvez, mas nem melhor nem pior que outra.
Se eu assinasse com o meu nome civil as bagatelas que escrevo, por quem é que seria tomada? Por uma extravagante, por uma deformada. E os que têm confiança em mim, deixariam de a ter.
Devo ser prudente. Com a minha gente é que me tenho sempre encontrado, dela é que eu sou um ruim e claudicante membro, mas ainda assim, não desprezado... Esquecê-lo, seria ingratidão.»
[Irene Lisboa, «Solidão» I, Editorial Presença, pág. 89 e 90]
Gosto e utilidade!
Mas não esclareci nada.
Tratava-se de atitudes literárias.
Escrever assim como escrevo, sem qualquer ambição de notoriedade, parece-me extraordinariamente útil. Mas não o sei pôr em liguagem clara! Por isso me embrulhei em evasivas. Desnorteei Q., que com a sua galantaria de lisboeta e de letrado, uma galantaria muito especial, me convidava a aparecer... Não sei onde, nem como.
Eu suponho, em boa verdade, que os anonimatos, que a folga e a inteligência dos anonimatos, se não podem definir bem. Que por si se justificam. Um anonimato é vital e elementar, espontaneamente útil; cobre as necessidade de cada um que o usa, esporádicas ou permanentes. Mas há quem tome o anonimato dos artistas por uma espécie de tarrafias, de gracinhas, de jogo ou de vaidade... E sê-lo-à!
A mim, porém, qualquer coisa de mais grave e mais indeterminada me tem levado a adoptar o anonimato, os pseudónimos. Talvez um subtil espírito utilitário, de defesa. De inversão da arrogância, da combatividade, também. De timidez, ou de fuga à responsabilidade intelectual, ainda... Não posso precisar perfeitamente o que seja! Eu julgo ter ainda sobre tudo isto, levemente contingente e exterior, a fugir-lhe... uma noção de que à obra de arte, reservada, independente, se pode ligar toda a indeterminação que lhe apraza, que lhe quadre!
Que significa um nome de autor? Nada! À roda destas coisas ligeiras que eu aproveito para meus temas literários, porque não há-de flutuar um dos meus nomes de ocasião? Tanto faz que seja X o protagonista, como X o seu explorador...
A literatura teve sempre muito de aberrativa, de fantasista. Nomes, pseudónimos, têm absolutamente o mesmo valor das figuras e das localidades. Não valorizam as obras.
E sendo a minha análise sempre tão cingida ao passageiro, sendo uma espécie de exploração da rápida eventualidade, não poderá admitir, com sofrível elegância, com propriedade, a variedade dos pseudónimos?
Este meu escrever sobre 'nadas', creio que até me chega a dar uma absoluta indiferença pelas 'categorias' literárias! Me desinteressa de todo o rang e classe... Me inquina cada vez mais de uma corajosa e perversa paixão de liberdade.
Os pseudónimos não me encobrem dos profissionais das letras, naturalmente!
Mas o mundo deles não é o meu...
O meu, o que por mim se interessa, com boa ou ruim humanidade, não é de letrados nem de artistas, nem sequer de gente de boa sociedade. É de gente de letras grossas! Grosseira, talvez, mas nem melhor nem pior que outra.
Se eu assinasse com o meu nome civil as bagatelas que escrevo, por quem é que seria tomada? Por uma extravagante, por uma deformada. E os que têm confiança em mim, deixariam de a ter.
Devo ser prudente. Com a minha gente é que me tenho sempre encontrado, dela é que eu sou um ruim e claudicante membro, mas ainda assim, não desprezado... Esquecê-lo, seria ingratidão.»
[Irene Lisboa, «Solidão» I, Editorial Presença, pág. 89 e 90]
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