Estava folheando o diário de K.M. à procura de um pequeníssimo quadro, de que me lembrava e me parecia falso, benévolo, fantasista.
Apraz-me rectificá-lo.São poucas as frases de lá. É um quadro verbal. Suponhamos que é isto:
Vim, diz ele.
E ela: sim?
Para isto... diz ele ainda, e puxa-a para si.
Ela, impressionada, sente-se desfalecer.
A minha rectificação pode vir a ter um ar tão gratuito como a fantasia de K.M., mas para mim é a minha... aquilo que sobre o facto admito ou penso. Enfim, anulo a precipitação dele e o pronto desfalecimento dela.
Ele chega, sobre as escadas. Nestas escadas não há espécie de mistério, nem tão pouco na terra nem na rua. Em parte nenhuma se manifesta, se respira aquela atmosfera pesada e excitante, que costuma animar a literatura irrealista.
Ele chega, ela espera-o. Espera-o sem feliz inquietação nem consolo. É uma mulher desconsolada. Pensa que ele não venha, que já não apareça; espera-o sempre sem confiança.
Mas para ele foi preparando uma infinidade de pequenas coisas graciosas, de que ele nunca se aperceberá. Deu-se a tarefas sucessivas, como as noivas. Espera-o com indiferença e tenacidade, é curioso! E despreza-o. Como o não conhece muito tem a impressão de que ele é caprichoso e também venal. Mas apesar da insegurança que sente, e da sua resistência, acha que ele representa muito para ela, que representa o mistério... É a luz e ela a borboleta cega.
Enfim, ele chega. O seu toque com os nós dos dedos à porta surpreende-a. Abre-lhe a porta e ele entra, mas de repente. Tão furtivamente, porquê? Ela pensava que lhe havia de ir abrir a porta em baixo (o fecho estava escangalhado), que não acenderia a luz, que ele a beijaria na escada... Tudo fatalidades, preconcebidas e agradáveis, como as do pequeno quadro de K.M.
Mas não! Ele entra rapidamente, embora sem intimidade, mostrando-se desde logo intruso. Depois apertam-se as mãos e sentam-se. A casa é pequena e faz frio. Os joelhos dele tocam os dela. Ela faz-lhe perguntas sem importância nenhuma, de amabilidade. Ele pouco fala. Vem de longe... Ri. É engraçado, realmente, um pouco estranho, um pouco esquivo. Ela sente-se desconcertada. Ele olha-a, diz-lhe coisas soltas sem pensar, e chega-se mais. Afinal viera... o coração dela mirra. Sente-se tão pouco desenvolta! Aceita tudo, desconsolada. Um abismo os separa, um abismo! E nem ele nada quer dela, mas beija-a. E beijando-a se excita.
Mas como se tinham beijado já? Nunca assim. Como se tinham beijado naquelas noites de Outono... sobretudo numa tão formosa, tão longa e tão estrelada, que ainda lhe parecia desgarrada, única? Nunca assim...Sem se importarem com o tempo! Com gosto perfeito ou imperfeito, sincero ou iludido, mas com uma sensação tão empolgante de desejo! Uma sensação tão rara de ânsia e de sofreguidão! Não se tinham dado um ao outro, ele negara-se, mas tinham-se doidamente beijado e desejado. Embriagado de enervamento e de cansaço.
E agora? Ele ali estava, mas como um desconhecido. Era um imoral, um céptico. Por fim ela põe-lhe levemente as mãos na cara. Fita-o muito de perto. Os olhos assim vistos fascinam. Parecem presos e mais largos, dominados... Os olhos dela, tristes, seguem o movimento vagaroso dos dele, a sua expressão ora paciente, ora maliciosa. Por fim uns e outros se cansam.
Mas se uma pequena palavra, um pequeníssimo acordo de intimidade se estabelecesse...Mas para ele foi preparando uma infinidade de pequenas coisas graciosas, de que ele nunca se aperceberá. Deu-se a tarefas sucessivas, como as noivas. Espera-o com indiferença e tenacidade, é curioso! E despreza-o. Como o não conhece muito tem a impressão de que ele é caprichoso e também venal. Mas apesar da insegurança que sente, e da sua resistência, acha que ele representa muito para ela, que representa o mistério... É a luz e ela a borboleta cega.
Enfim, ele chega. O seu toque com os nós dos dedos à porta surpreende-a. Abre-lhe a porta e ele entra, mas de repente. Tão furtivamente, porquê? Ela pensava que lhe havia de ir abrir a porta em baixo (o fecho estava escangalhado), que não acenderia a luz, que ele a beijaria na escada... Tudo fatalidades, preconcebidas e agradáveis, como as do pequeno quadro de K.M.
Mas não! Ele entra rapidamente, embora sem intimidade, mostrando-se desde logo intruso. Depois apertam-se as mãos e sentam-se. A casa é pequena e faz frio. Os joelhos dele tocam os dela. Ela faz-lhe perguntas sem importância nenhuma, de amabilidade. Ele pouco fala. Vem de longe... Ri. É engraçado, realmente, um pouco estranho, um pouco esquivo. Ela sente-se desconcertada. Ele olha-a, diz-lhe coisas soltas sem pensar, e chega-se mais. Afinal viera... o coração dela mirra. Sente-se tão pouco desenvolta! Aceita tudo, desconsolada. Um abismo os separa, um abismo! E nem ele nada quer dela, mas beija-a. E beijando-a se excita.
Mas como se tinham beijado já? Nunca assim. Como se tinham beijado naquelas noites de Outono... sobretudo numa tão formosa, tão longa e tão estrelada, que ainda lhe parecia desgarrada, única? Nunca assim...Sem se importarem com o tempo! Com gosto perfeito ou imperfeito, sincero ou iludido, mas com uma sensação tão empolgante de desejo! Uma sensação tão rara de ânsia e de sofreguidão! Não se tinham dado um ao outro, ele negara-se, mas tinham-se doidamente beijado e desejado. Embriagado de enervamento e de cansaço.
E agora? Ele ali estava, mas como um desconhecido. Era um imoral, um céptico. Por fim ela põe-lhe levemente as mãos na cara. Fita-o muito de perto. Os olhos assim vistos fascinam. Parecem presos e mais largos, dominados... Os olhos dela, tristes, seguem o movimento vagaroso dos dele, a sua expressão ora paciente, ora maliciosa. Por fim uns e outros se cansam.
Ele sempre fala. E que lhe diz?
Umas coisas tão mesquinhas e tão calculadas! Tão inúteis, e mesmo tão vexatórias!
Ela, pisada, arrefecida, ouve-as.
Para aquilo viera... Há cobardia na sua atitude. Mas para quê ter vindo? Só para a ofender e humilhar?
O cálculo dos homens! As suas desculpas! Sempre e só o cálculo...
Aquela amargura que ela sentia não era nova. Não, não era. Ela conhecia-a, parecia-lhe que já desde a eternidade... Os homens abusavam dela, da sua real inocência.
E chorou. Caíram-lhe as lágrimas pela cara abaixo. Mas logo uma súbita secura a impassibilizou. Envergonhou-se de ser fraca.
E ele voltou a beijá-la. Talvez que a desculpar-se. Por fim beijaram-se com teima. E ele ficou.»
[Irene Lisboa, «Solidão», I volume, Editorial Presença, pág. 39-41]
[Irene Lisboa, «Solidão», I volume, Editorial Presença, pág. 39-41]