Lear



KING LEAR
So young, and so untender?
CORDELIA
So young, my lord, and true.
KING LEAR
Let it be so; thy truth, then, be thy dower
(...)

William Shakespeare

Oliveretto de Fermo

Foi valente, foi formoso e artista.
Inspirou amor, terror e respeito.

Ao pintá-lo todo nu gladiando,
gloriou seu pincel Tintoretto.

Machiavelli nos conta sua história
de assassino elegante e discreto.

Em Sinigaglia o enforcou César Bórgia...
Deixou um quadro, um punhal e um soneto.


O tempo...

«O tempo, que às vezes confirma e outras desqualifica, foi desvanecendo em si o ressentimento exasperante que no princípio lhe suscitava a recordação dessa 'velha amizade' ou desse 'amor postergado'. Com o decorrer dos meses, do compêndio de sensações nefastas que o seu nome lhe produzia, apenas sobreviveu um sabor amargo. Depois, reconsiderando a questão, acrescentou que certos laços respiram por necessidade. Eram de maior valor as cartas que a consagração do encontro, e era mais importante o augúrio amoroso que a convertação real do vínculo.»

Onde estiver o corpo morto é que se juntam os abutres

«Alguns fariseus perguntaram a Jesus quando é que chegava o reino de Deus. "O reino de Deus não vem como uma coisa que se possa observar", respondeu-lhes. "Não se poderá dizer: Está aqui ou está acolá. Na verdade, o reino de Deus já está no vosso meio."
Depois disse aos discípulos: "Lá virá o tempo em que desejarão ver ao menos um só dos dias do Filho do Homem e não poderão. Alguns hão-de dizer-vos: 'Olha, está aqui', ou 'está acolá'. Mas não vão atrás desses boatos, porque o Filho do Homem virá no seu dia próprio como um relâmpago que ilumina o céu dum extremo ao outro. Mas primeiro tem ele que sofrer muito e ser rejeitado pelas pessoas deste tempo.
Tal como aconteceu no tempo de Noé, assim vai ser nos dias do Filho do Homem. Comiam, bebiam e casavam-se, até ao dia em que Noé entrou na arca. Depois veio o dilúvio e morreram todos. Assim aconteceu também no tempo de Lot: comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e construíam. Mas no dia em que Lot saiu de Sodoma, caíu do céu fogo e enxofre sobre a cidade e morreram todos. Assim sucederá no dia em que o Filho do Homem aparecer.
Nesse dia, quem estiver no terraço não desça a casa para tirar de lá seja o que for, e se estiver no campo não volte para trás. Lembrem-se da mulher de Lot! Aquele que quiser salvar a vida perde-a e o que a perder, salva-a. Digo-vos que nessa noite estarão duas pessoas na mesma cama: uma será levada e a outra fica. Duas mulheres estarão juntas a moer farinha: uma será levada e a outra fica. Dois homens estarão no campo: um será levado e o outro fica.
" Nessa altura os discípulos perguntaram-lhe: "E onde vai ser isso, Senhor? "Onde estiver o corpo morto" replicou ele, "é que se juntam os abutres".» LUCAS 17,16-18,3

Foi uma tristeza...

«Foi uma tristeza nova a que ontem me visitou na casa de chá, no meio das minhas amigas macaenses. Estava connosco um moço que tinha graça, e ríamos. Falou-se de jogo, de dança, de papagaios. Nas outras mesas, mulheres e homens metropolitanos, macaístas, um ou outro chinês. No ar, música suave. A tarde tombava.
E eu a meditar na minha tristeza. Fazia o seu exame enquanto contava do papagaio da costureira em Luanda, a receber as senhoras à porta: «Entra, meu bem, estás bonita!... Que material!» Os companheiros da mesa acharam engraçado, puseram-se a repetir o palrar do pássaro.
A minha tristeza passava a fronteira envidraçada do salão, seguindo rua além, e, atrás dela, qual vestido de cauda, um rasto de desolação.
Sinto-me agora frequentemente cínica, egoistamente triste, mas ontem foi diferente - um sentimento calmo e fundo, tão fundo que fiquei abismada diante dele, tão calmo que me vi a aceitá-lo, humilde, como o lavrador aceita a seca ou a monção.
A minha tristeza enchia a sala, o largo lá fora, o próprio céu; pousava-se em todas as coisas; era tudo. Desistir de mim, ceder, entregar-me a ela, parecia a única solução. Não sei explicar, tratava-se de um grande problema. Não era só eu, o mundo inteiro. Um acontecimento inevitável, igual à morte.
Acreditei que todas aquelas pessoas estavam tristes comigo, sem mesmo o saberem - gente que ria e que contava histórias de papagaios. O próprio Deus, longe ou perto, tinha de ser um Deus triste. Cheguei a ver um halo de tristeza aureolando a cabeça de cada um, e todas as nuncas vergarem ao peso da fatal eleição.
As horas corriam. A noite fechou-se. Despedimo-nos.
Já na rua, ao dobrar da esquina, um homem embargou-me o passo.
Era novo, esguio, de olhos cinzentos. Vi-lhe a cor dos olhos quando acendeu o isqueiro para o cigarro, e vi, no escuro, a chama trémula dar-lhe às pupilas claras tons de pérola. Falou, mas as palavras não lhas fixei. Guardei, sim, esta cena: a minha tristeza a abraçá-lo, longa, carinhosamente, do jeito que os homens gostam de ser abraçados.
Não sei o tempo que durou aquilo, nem me lembro de mais nada. Só sei que, ao atravessar a rua para entrar em casa, o brilho dos olhos de pérola se repetia nas pedras da calçada, à luz da lua

[ Maria Ondina Braga, «Estátua de Sal», Ulmeiro, p.36-37]    

Paradoxo

«Dizes então que vais fazer do Certo o teu mestre e livrar-te do Errado, ou fazer da Ordem o teu mestre e livrar-te da Desordem? Se o fizeres, então não percebeste (...). É impossível, obviamente». Chuang Tsu

«Se eu disser que se comportam como partículas estou a dar uma impressão errada; o mesmo se disser que se comportam como ondas. Elas comportam-se de forma própria e inimitável, no que poderíamos chamar, tecnicamente, uma forma mecânica quântica. Comportam-se de uma maneira que é algo nunca antes visto». Richard P. Feynman

[in «Einstein e Buda - palavras comuns», editor Thomas J.Mcfarlane, estrela polar, p.71]

Receita para fazer um herói

Tome-se um homem
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.


[Reinaldo Ferreira, «Nunca Mais é Sábado - Antologia de Poesia Moçambicana», org. e prefácio de Nelson Saúte, Dom Quixote, p.119]

Talvez...

«Talvez eu pudesse ter dado a quem nos lê um excerto do teu passado mas não o fiz, como uma fotografia que se retira da sala porque o fotografado morreu ou deixou de existir no nosso coração e ele nota que o mataram porque deixou de estar ali e matamo-lo assim mesmo aos olhos de quem estiver e ele que veja porque os mortos não têm olhos para ver que os mataram, a minha fotografia estava ali e já não está e eu finjo que não dói fazendo de conta que não vi e estavam tão contentes quando disseram «olha, querido, tu ali!» e eu tão feliz.
Mas não te dei, Manuela, e és agora uma sombra, ténue, inerte, pouco mais és, Manuela, enquanto personagem deste livro que a tua função, não tens mais biografia do que o que fazes como sobrevivência e este acanhado lugar onde a exerces, não há mais pessoa em ti do que o emprego, nem mais mulher porque não há ninguém para quem o ser».

A xícara

«Extraordinário como as coisas, até as mais simples, podem comunicar felicidade ou tristeza. Uma vivência longínqua fica-lhes colada para sempre e basta, assim, a sua presença para no-la fazer reviver. Era em Angola e eu estava de visita àquela família.
D. Eugénia, a dona da casa, pusera a mesa para o pequeno-almoço: o pão, a manteiga, os bules do café e do leite. Tudo comum, conhecido de cada manhã, excepto a xícara. Esta, especial, com uma paisagem no bojo e um pires alongado em forma de palmatória onde caberiam torradas ou uma fatia de bolo.
E senti uma pancada na porta fechada das minhas lembranças.
A casa paterna abria-se diante de mim, adolescente, e a mãe, pálida, na cama, tomava o leite pela xícara de louça fina, tão fina que se via a bebida descendo lentamente.
Dias infelizes esses em que a mãe estava doente, mas aquela recordação era boa até às lágrimas: as cortinas de renda no quarto sombrio, o cheiro doce do chá de tília, o anoitecer penoso como dor física, as palavras que se diziam e que soavam sempre absurdas.
Na cabeceira da cama, um rosário de madeira, tão comprido que se diria de frade franciscano, e no canto sobre o qual a porta abria, a mancha clara do oleado novo a remendar o antigo que se tinha rompido.


Agora, D. Eugénia admoestava as crianças, contava de planos caseiros, de desavenças com os criados.
Fora, a manhã ia alta. Percebia-se o calor por entre as persianas semi-cerradas.


De novo a casa paterna. (A xícara, a única coisa viva ali, e as pessoas meros objectos decorativos.) Ser-me-ia fácil aspirar o aroma das maçãs camoesas no armário da roupa, repetir as orações que nesse tempo rezava ao deitar.
No espelho da cómoda, grande, oval, a minha imagem aparecia nítida e esplêndida. Nunca mais depois encontrara espelhos iguais aos de casa. Sem defeito, aqueles. As feições das pessoas reflectiam-se lá distintamente marcadas. Os espelhos das casas dos outros, os espelhos das pensões, os espelhos dos «lares», eram sem categoria todos, e a gente surgia neles miseravelmente vulgar.
Ainda a figura da mãe: face definhada, cabelo grisalho, o corpo recostado em almofadas. Deus meu, como parecia velha! Tivera essa surpresa uma tarde, ao olhar para o espelho da cómoda defronte do leito. A morte insinuava-se através do cristal.


Um dos meninos pediu o urso amarelo. A dona de casa chamou o negro que veio da cozinha a limpar as mãos ao avental.
Numa tacinha de vidro, na mesa, bolachas cobertas de açúcar areado.
E a intimidade crescia como massa de pão a levedar.
Na casa de hóspedes onde vivia, tinha eu o mesmo café com leite em bules de metal, porém a chávena, de faiança branca, bordos grossos, letras azuis a marcar.
Que importava que aquela terra fosse argilosa e quente, que as pessoas em redor me não pertencessem nem pelo sangue nem pela tradição, se de repente me encontrava na porcelana da xícara?
Os dedos tremiam-me.
Para lá da vida estava a minha gente. Os que amara tinham a pouco e pouco atravessado o espelho. Sabia que não eram mais meus, mas podia ver-lhes a imagem, lembrava-os, acreditava neles. Por vezes possuía-os em sonhos - uma espécie de revelação do mundo da morte em que cada um se erguia solene, indiferente, superior.


O centro da mesa com flores artificiais esta prestes a ser derrubado por um dos pequenos. A mãe ralhou. A criança foi acabar a refeição na cozinha.
Lá fora, o pregão da Notícia. Passos na escada. D. Eugénia interrompeu a torrada. O jornal de domingo trazia-lhe sempre certa excitação.


Outros passos. Estes ritmados, firmes. Fazia escuro e vinham da rua. Ao entrar o corredor o seu som enfraquecia.
Nas paredes do quarto a chama da lamparina era tonta, dançando.
Murmúrio de vozes. A doente suspirava.
Ele trazia consigo o hálito da noite, a gabardina rangia no corpo alto, o rosto vincava-se de preocupação.
Mas o afastar dos passos isso é que jamais poderia ser esquecido.
E os dias passados voltavam a passar ali, ao mesmo tempo lúcidos e indefinidos, como se nunca os tivesse vivido de todo. Restava-me deles um amargor e a solidão que se me agarrara ao peito como hera a um muro.


O calor enchia já a sala. Alguém me ofereceu um leque. O negro veio de dentro com recado do patrão para se ir para a praia. Toda a gente se ergueu e as crianças alvoroçaram-se.
De tão pesado, o ar bem podia ter feito estalar a porcelana da xícara



Ilusões e desilusões (1)



«Uma vez, Chuang Chou sonhou que era uma borboleta (...) 
Subitamente acordou e lá estava ele, o verdadeiro e inconfundível Chuang Chou. Mas não sabia se era Chuang Chou que sonhara ser uma borboleta, ou se era uma borboleta a sonhar que era Chuang Chou». Chung Tzu,

«Pessoas como nós, que acreditam na Física, sabem que a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosa e persistente.» Albert Einstein

[Thomas J. Mcfarlane, «Einstein e Buda»», estrela polar, p.116 e 150]

Angústia II

«"Quando eu estava na angústia, invoquei-te, SENHOR, 
e tu respondeste-me;
do fundo do abismo, gritei por ti
e ouviste o meu pedido.
Atiraste comigo para as profundezas do mar
e a corrente envolveu-me;
as tuas ondas e as tuas vagas
passaram por cima de mim.
Pensei que me tivesses expulsado 
para longe da tua presença.
Como poderia voltar a ver
o teu santo templo
As águas cobrem-me até à garganta,
o abismo engoliu-me,
as algas enrolaram-se-me à cabeça.
Desci até aos alicerces das montanhas
e os ferrolhos da morte fecharam-se atrás de mim para sempre.
Mas tu, SENHOR, fizeste-me sair vivo do sepulcro.
Quando eu estava a desfalecer,
lembrei-me de ti, SENHOR,
apresentei-te a minha oração,
que chegou ao teu santo templo.
Aqueles que adoram ídolos sem valor
quebram a fidelidade para contigo.
Mas eu, com hinos de gratidão,
hei-de oferecer-te um sacrifício
e cumprirei as minhas promessas.
Só tu, SENHOR, podes livrar-nos do perigo!"
E o SENHOR fez com que o peixe fosse vomitar Jonas em terreno firme.»

[«a Bíblia para todos - edição literária», Círculo dos Leitores, p.1026] 

 

Preço da verdade

No antigo sótão da memória poída,
por trás da colher de pau carunchosa,
sob a roupa velha há-de encontrar-se, ou junto ao muro
carcomido, na poeira
de séculos. Há-de encontrar-se talvez para lá do pálido gesto da mão
velha de algum mendigo, ou na ruína da alma
quando tudo cessou.
Pergunto a mim próprio se é preciso o caminho
poeirento da dúvida tenaz, o desalento súbito
na planície estéril, sob o sol da justiça,
a ruína de toda a esperança, o farrapo coçado do medo, a angústia invencível
                       [a meio do carreiro que conduz ao torreão desmoronado.
Pergunto a mim próprio se é preciso deixar o caminho real
e meter à esquerda pelo atalho e a vereda,
como se nada tivesse ficado para trás na casa deserta.
Pergunto a mim próprio se é preciso ir sem vacilar até ao horror da noite,
penetrar no abismo, na boca do lobo,
caminhar para trás, de costas para a negação,
ou inverter a verdade, no desolado caminho.
Ou se antes é preciso o soluço de pó na confusão de um verão
terrível, ou no transtornado amanhecer do álcool com trombetas de sonho
saber-se de súbito absolutamente desertos, ou melhor,
é talvez necessário ter-se perdido no sórdido pacto do amor,
ter contratado na sombra uma ilusão,
comprado por dinheiro uma reminiscência de luz, um encanto
de amanhecer por trás da colina, junto ao rio.
Admito a possibilidade de ser absolutamente necessário
ter descido, ao menos uma vez, até ao fundo do edifício escuro,
ter descido, tacteando, o perigo da escada a desfazer-se, que ameaça ceder
                                                                    [a cada um dos nossos passos,
e ter penetrado por fim com valentia na indignidade, na cave escura.
Ter visitado o lugar da sombra,
o território da cinza, onde a vileza repousa
junto à teia de aranha paciente. Ter-se instalado o pó,
tê-lo mastigado com tenacidade em longas horas de sede
ou de sono. Ter correspondido com coragem ou ousadia
ao silêncio
ou à pergunta derradeira e ter-se ali fortalecido e acautelado.
É preciso ter-se entendido com a verdade criminosa
que nos assalta em plena noite, nos tira o sono e rouba
até ao último centavo. Ter mendigado longos dias depois
pelos bairros mais miseráveis de cada um, sem esperança de recuperar
                                                                                           [o perdido,
e por fim, espoliados, ter continuado o caminho sincero e entrado na
                                                     [noite absoluta com coragem ainda.

[Carlos Bousoño, in «Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea», selecção e tradução de José Bento, Assírio e Alvim, p.507-508]


Hoje, o Sol inunda a terra,
Cristais de lágrimas,
Amor abismado,
cada semente, uma pérola!
- Oh, Lago Salgado!


[poema de Yuang Mu, in «Angústia em Pequim» de Maria Ondina Braga]

The Age Of Innocence



Martin Scorsese, "The Age Of Innocence", 1993


Ach, ich fühl's


«Die Zauberflöte», K620,
Wolfgang Amadeus Mozart, Johann Emanuel Schikaneder.
Pamina : Gundula Janowitz, Aix en Provence, 1963


Ach, ich fühl's, es ist verschwunden,
Ewig hin der Liebe Glück!
Nimmer kommt ihr Wonnestunde
Meinem Herzen mehr zurück!
Sieh', Tamino, diese Tränen,
Fließen, Trauter, dir allein!
Fühlst du nicht der Liebe Sehnen,
So wird Ruh' im Tode sein!

Ich habe genug



Ich habe genug,
Ich habe den Heiland, das Hoffen der Frommen,
Auf meine begierigen Arme genommen;
Ich habe genug!
Ich hab ihn erblickt,
Mein Glaube hat Jesum ans Herze gedrückt;
Nun wünsch ich, noch heute mit Freuden
Von hinnen zu scheiden.

Caim

(...)De Abel sabe-se que era pastor. O seu irmão Caim era agricultor e oferecia a Deus em sacrifício uma parte da colheita. Abel quis também oferecer alguma coisa: «Também ele», "gam hu" diz a narração. E não tendo primícias, ofereceu os primogénitos do seu gado. É a primeira vez, e por isso Deus volta-se para esta nova espécie de sacrifício. As traduções aqui falam duma preferência, de um tratamento de favor da parte de Deus. Mas a escritura hebraica usa aqui um verbo bastante raro, "sha'à" (15 casos), que estará duas vezes na boca de Job quando, extenuado pelo sofrimento, grita a Deus: «Como não te afastas de mim, e nem ao menos permites que engula a minha saliva?» (Job 7,19) E ainda mais um igual convite a deixar em paz o homem, a não fincar nele o olhar: «Desvia-te dele, para que repouse» (Job 14,6). E também David no salmo 39 pede com um verbo categórico a Deus: «Desvia-te de mim para que eu me restabeleça» (Sl 38,14). Não é um olhar de favor o de Deus sobre Abel, mas Caim interpreta-o assim porque a oferta atraiu a atenção de Deus, afastando-se das primícias por ele trazidas. E Deus toma consciência daquele sentimento furioso e procura avisar Caim de que nele existe um mal que está a crescer como uma inundação: chama àquela febre "teshuká", uma enchente de águas que transbordam.
Mas aquele irmão Abel tirou-lhe algo mais, intrometendo-se entre ele e Deus. Matá-lo será um acto de puríssima inveja. Porque é esta desde o início a relação entre Deus e o ser humano: de amor exclusivo e recíproco, ao ponto de escrever nas palavras do Sinai que Deus é "El kanná", Deus invejoso que não admite infidelidade.
A esta paixão sucumbe, Abel, ignorante, que no fundo imitava Caim nas ofertas, porque desejava a mesma coisa: ser também ele apaixonadamente amado por Deus.




«que diabo de deus é este que, para enaltecer abel, despreza caim
José Saramago

Dúvidas

«Quando temos Deus dentro de nós, é para sempre. Não há dúvidas. Podemos ter outras dúvidas, compreende? Mas essa dúvida específica nunca mais a temos. Não, nunca tive dúvidas. [...]Mas estou convencida de que é Ele e não eu. De que a obra é Dele, e não minha. Eu apenas estou à Sua disposição. Sem ele nada posso fazer. Mas nem Deus pode fazer o que quer que seja por uma pessoa que já esteja cheia. Temos de estar completamente esvaziados para O deixar entrar e fazer o que Ele quiser. Essa é a parte mais bela de Deus, compreende? Ser omnipotente, mas não Se impor a ninguém.»
[Madre Teresa, «Vem , sê a minha Luz", Alêtheia Editores, p.264]

Vidas vencidas

«Que eu, toda triste, acho que não sou. O certo é que tanto por mim mesma como pelo próximo, sei mais de tristeza que da alegria. Sou assim como se, dia a dia, me defrontasse com a figura do desengano. Mais até talvez que desengano. Da destruição.
E eis que me acode agora à ideia folhear um antigo caderninho de notas e revelar aqui as minhas juvenis reflexões: "Sou como a Fénix da lenda. Morro e ressuscito. Morro não em ninho de chamas olorosas mas sim na sequidão de um deserto. Que do meu coração quebrado, o renascimento me vem das histórias que crio. As vidas das histórias."
De resto, o enfado das rezas, nessa idade. Pior que enfado, esgotamento. Preces desatentas, as minhas, devido ao peixe dourado do aquário, os círculos que o peixinho desenhava, para trás e para diante, à volta do vidro. Também aos quatro continentes no tecto da sala: Europa, Ásia, África, América. Tão velha a casa que, ao ser construída, decerto não se conhecia ainda a Oceânia.
'Perdoai-nos, Senhor, as nossas ofensas como nós perdoamos'... Rezava-se.
E eu que, então, perdoava tudo. Não hoje, que já sofri de mais.
A ladainha de Nossa Senhora, a criada Elisa quem a recitava num latim estragado: 'Túrris ebúrnea... Janua Caeli...' E nós: 'ora pro nobis, ora pro nobis'. E logo ela! Que entenderia de tal língua? O que seria, afinal, tanto para ela como para nós, aquela arremedada melopeia? Rezava-se à noite e às escuras, para se poupar electricidade.
Na Avenida, contudo, os candeeiros da iluminação pública. Quando não lua cheia na abóbada celeste. Parecia, porém, que se via melhor sem luz. Os rebrilhos do peixe na escuridão líquida e límpida. Os baixos-relevos em estuque no tecto.
Depois de terminadas as orações, a mãe inquieta por causa da galinha de choco na adega. Nem era para menos. Uma semana inteira a pedrês sem sequer engolir um grão. De febre? De fastio? Ai se amanhã de manhã a encontrava morta! Os pintainhos prestes a picar os ovos. Santantoninho!»

[Maurice Béjart - "Brel Barbara"]

Avec Elegance

Se sentir quelque peu romain
Mais au temps de la décadence
Gratter sa mémoire à deux mains
Ne plus parler qu'à son silence
Et
Ne plus vouloir se faire aimer
Pour cause de trop peu d'importance
Etre désespéré
Mais avec élégance

Sentir la pente plus glissante
Qu'au temps où le corps étais mince
Lire dans les yeus de ravissantes
Que cinquante ans c'est la province
Et
Brûler sa jeunesse mourante
Mais faire celui qui s'en dispense
Etre désespéré
Mais avec élégance

Sortir pour traverser des bars
Où l'on est chaque fois le plus vieux
Y éclabousser de pourboires
Quelques barmans silencieux
Et
Grignoter des banalités
Avec des vieilles en puissance
Etre désespéré
Mais avec élégance

Savoir qu'on a toujours eu peur
Savoir son poids de lâcheté
Pouvoir se passer de bonheur
Savoir ne plus se pardonner
Et
N'avoir plus grand chose á rêver
Mais écouter son coeur qui danse
Etre désespéré
Mais avec espérance

Jacques Brel

Estranhos

«As mulheres e homens que vêm da feira, elas com gamelas à cabeça e eles desasados e de cântaros na mão, passam-me debaixo das janelas como estranhos, que me são.
Dentro de qualquer panelita ou tacho de barro um punhado de sardinhas... E vão, devagar, trajados de domingo, calçados... E eu olho-os indiferente, pensando apenas no barro antiquíssimo de que eles se servem, na petinga salgada que comem, nas suas vidas, paralelas, e jamais concordes, jamais fundíveis com a dos bons proprietários.»
[Irene Lisboa, «Solidão» II, p.222]

Eis-me aqui



[foto daqui]

«Chamar 'tu' a Deus, com variantes que vão da imprecação à súplica, é o arbítrio maravilhoso da criatura que remonta à sua origem e a interroga, por ela chama e a sacode na distância. Quem pela primeira vez exclamou a primeira oração não a pode ter inventado. Só pode ter reagido a um chamamento com uma resposta, como Abraão com o seu "hinnèni", eis-me aqui. Eis-me aqui é a primeira palavra, a premissa de toda a oração. A criatura separa-se do resto da espécie e da criação, exclui-se para estabelecer a relação. A oração acontece sempre numa extremidade do campo. Lê-se no salmo 78: "E conduziu-os à sua morada santa" (Sl 78,54). Deus leva os hebreus para o deserto, porque aquele é o lugar do encontro. Não os chama num centro, numa praça, mas no isolamento inóspito do vento e do pó.
No deserto: é este o lugar físico da oração. O crente cria o vazio à sua volta e desta forma faz acontecer o encontro


[Erri De Luca, «Caroço de Azeitona», Assírio & Alvim, p.7]

Ninguém ama de olhos fechados

Dormir, sim,
quando o silêncio
dói. Mas nunca
se dorme quando
o amor
é uma insónia. Ninguém
ama de olhos
fechados.


Albano Martins, «Palinódias, Palimpsestos»
[ poema 'surripiado' no «ComLivros-Teresa»; ver ainda uma entrevista, aqui]

Responsabilidade involuntária



«Naquele tempo, tentei muitas vezes falar com amigos meus sobre o problema: imagina que alguém corre conscientemente para a sua ruína e que tu podes salvá-lo - o que farias? Imagina uma operação e um doente que tomou drogas que são incompatíveis com a anestesia, mas que se envergonha de ser um drogado, e não o quer dizer ao anestesista - ias falar com o anestesista? Imagina um processo em tribunal e um acusado que vai ser punido porque não confessa que é canhoto e por isso não pode ter cometido aquele crime, que foi cometido por um mão direita, mas que tem vergonha de ser canhoto - irias dizer ao juiz o que se está a passar? Imagina que é um homossexual, que não pode ter cometido aquele acto, mas que tem vergonha de ser homossexual. Não se trata aqui da questão de uma pessoa se envergonhar por ser canhoto ou homossexual: imagina, apenas, que o acusado tem vergonha. (...)
- Não, o teu problema não tem uma solução agradável. Naturalmente que temos de agir se a situação que descreveste é uma situação que implica uma responsabilidade involuntária ou uma responsabilidade que decidimos assumir. Ao sabermos o que é melhor para o outro, e sabendo que ele se nega a vê-lo, temos de tentar abrir-lhe os olhos. Devemos deixar-lhe sempre a última palavra, mas temos que falar com ele, com ele e não com outra pessoa nas suas costas.»

[Bernhard Schlink, «O Leitor», Ed. Asa, p.90, 91 e 94]

La lluvia

Bruscamente la tarde se ha aclarado
porque ya cae la lluvia minuciosa.
Cae o cayó. La lluvia es una cosa
que sin duda sucede en el pasado.

Quien la oye caer ha recobrado
el tiempo en que la suerte venturosa
le reveló una flor llamada rosa
y el curioso color del colorado.

Esta lluvia que ciega los cristales
alegrará en perdidos arrabales
las negras uvas de una parra en cierto

patio que ya no existe. La mojada
tarde me trae la voz, la voz deseada,
de mi padre que vuelve y que no ha muerto.


Jorge Luís Borges

[é magnífico! obrigado, T.  ]

De olhos abertos

«Agora que sabia fatos sobre Martim, agora que finalmente o olhava de olhos abertos, agora ela o desconhecia. E como um cego que tivesse recobrado a visão e não reconhecesse com os olhos aquilo que mãos sensíveis sabiam de cor, ela então fechou um instante as pálpebras, tentando recuperar o conhecimento íntegro anterior; abriu-as de novo e procurou fazer das duas imagens uma só. — Eu disse... — de novo ela o olhou quieta; mas porque não precisava mais dele para nada, pôde também olhá-lo com piedade e desprezo
[Clarice Lispector, «A maçã no escuro», Relógio D'Água, p.313]

O dia era de Outono e o vento soprava em pequenas rajadas, deixando na pele ainda nua das pernas um rasto frio. Encostada ao ferro da paragem, sozinha na rua deserta, a rapariguinha fixava os olhos na linha do horizonte que marcava o início da estrada, à procura de aí ver aparecer o tejadilho verde e logo a seguir a tela branca com letras pretas, a indicar o destino, e finalmente o autocarro inteiro, rolando desengonçado, encosta a baixo, até ao sítio onde ela estava. Esperava, e enquanto esperava, anoitecia, e em breve veria acenderem-se as luzes da rua. Na estrada, o movimento não era muito. Apenas de vez em quando um carro passava, dentro seguia gente com pressa de chegar a casa, o jantar por fazer, as crianças para despachar, banho, jantar e cama. Passavam sem reparar na paragem, na rapariguinha, de pé, à espera, olhos fixos no horizonte. Passavam, apenas, rumo ao destino. E cada vez que um deles passava sem olhar, ela suspirava de alívio, confortada pela segurança de uma rua vazia. Porque os outros são uma ameça, havia-lhe ensinado a mãe. «Nunca aceites boleia», dizia ela. «Nunca! Não confies em ninguém.»

Não posso adiar o amor


[imagem da Nasa]

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração
.

[ António Ramos Rosa ]

...le verbe aimer...

Un baiser, mais à tout prendre, qu'est-ce ?
Un serment fait d'un peu plus près, une promesse
Plus précise, un aveu qui veut se confirmer,
Un point rose qu'on met sur l'i du verbe aimer;
C'est un secret qui prend la bouche pour oreille,
Un instant d'infini qui fait un bruit d'abeille,
Une communion ayant un goût de fleur,
Une façon d'un peu se respirer le coeur,
Et d'un peu se goûter, au bord des lèvres, l'âme !


[Edmond Rostand, «Cyrano de Bergerac»]

Fora da medida

Naquela hora em que chorei, vexada, sozinha, sentada, a meio da tarde?
É sempre assim que se ressumam as duas ou três lágrimas presas, de finalização de um sentimento... Dos rápidos sentimentos brincados, que mal têm significação, que nos atribuímos por desporto amargo.
É verdade! Eu gosto de pensar, mas à custa dos outros, à custa dos seus movimentos, do seu jogo de vida...
Mas furtam-mo, furtam-mo!
Furtam-mo desta maneira: acham-me imaleável para tomar nele uma boa, uma airosa e consentânea parte.
Sou dura, abrupta. E tão dura quanto repentista, simplória, ingénua, desprevenida. Acompanho mal... atribuo fora da medida. E a uma hora do dia, calha à tarde, calha à noite, as minhas duas lágrimas de liquidação vêm-me.
Tenho um círculo de solidão! Nada o preenche. E o pouco que nele entra, sai... Sai escorraçado. Sempre indigno de lá ter entrado.
Mas afinal, o que ontem deixei por dizer?
Este assunto do R. cansa-me. De todas as cores que teve, já quase não tem nenhuma.
As pessoas afastam-se de nós, nós despegamo-nos delas... e o que havia a dizer, desfez-se!
Às vezes penso, pensava: quem importa aqui?
Eu... amolecida e curiosa, desperta, depois deprimida? Talvez.
Da pessoa dele, o essencial escapou-me. É isso que me desgosta.

[Irene Lisboa, Solidão II, Ed. Presença, p.78]

No fim

«Estava nisto quando recebo um telegrama de Tina - sua mãe morreu. Ou antes, não recebi, eu estava no jornal, vim já tarde para casa. Foi o Miguel que o recebeu e mo meteu entalado no disco do telefone. Sua mãe morreu - Tina. (...) Estarei triste? Não sei. Ou antes. De vez em quando a súbita iluminação que estou mais só. Reinventar a vida desde onde já a reiventara. Mas provisoriamente. (...) Porque eu queria uma relação clara com o facto da morte da minha mãe. Não tenho. Uma relação que passasse através do mito convenção parece bem. Não o sei. E todavia estou triste. Sofro. Mas não sei em que sítio de mim o sofrimento é verdadeiro como num pôr do Sol o Sol, acima ou abaixo do horizonte, e entretanto cheguei à estação.» [Vergílio Ferreira, «Até ao Fim», Quetzal, p.109-110]

O último instante

«Quando sentiu que estava morrendo, meu avô Celestiano chamou a mulher e pediu-lhe:
- Deixa-me fitar teus olhos!
E ficou, embevecido, como se sua alma fosse um barco deitado num mar que eram os olhos de sua amada.
- Tens frio?, perguntou ela vendo-o tremer.
- Não. És tu que estás a chorar.
- Chorar, eu? Começou foi a chover.
»

[Mia Couto, «Mar me quer», Caminho, p.63]
Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"


[Antero de Quental]

«A dez mil quilómetros de ti»

«Chegara ao escritório, mal tivera tempo de pousar a mala ou de despir ao menos o casaco, quando a viu, no tampo envidraçado da mesa, entre notificações e umas quantas inutilidades, uma carta, com a tarja de correio aéreo, as marcas da distância enrugadas no envelope.
Sentou-se, e na ânsia controlada que era o seu modo de sobreviver ao espanto, leu-a como se fosse alheia:


"Ouve-me. Ontem parece que acabou tudo o que me trouxe aqui. Vi-me como se a um espelho. Um sentimento de isolamento, o desejo de não estar, a incapacidade de fruir com os outros a autenticidade da vivência que eles gozam e lhes basta, entre a infâmia da intriga permanente e a indiferença face à miséria que nos circunda.
Hoje, estonteado pela luz, tentei sair à rua. Qual toupeira cega, não cheguei além do primeiro quarteirão empoeirado. O sol, o inclemente sol, perseguindo-me a cabeça, o zumbido de insectos alados anunciando um apetite voraz pelo meu sangue, hordas de crianças, pedintes, míseras, pertinazes na arte de perseguir por uma moeda, batedores do alheio, o estrangeiro como uma mina e o eldorado e, em tudo, um halo de cinzas, de destruição, de morte ainda fresca. Cambaleando de dor, regressei.
Dizem-me que é uma nação a fazer-se. Dizem-me que no ar condicionado se redigem prodígios de arquitectura legal. Na rua, ostensivas e arrogantes, patrulhas motorizadas, carros de combate e camiões, provocadora, uma parabólica esventrando os céus, sereias funcionárias estiradas nas praias, o luxuoso exibicionismo na areia suja, cochichos de fervilhante conspiração, de doentia maledicência entre copos, corpos e comezainas.
Não sei por quanto tempo ficarei, nem sei já se vale a pena aquilo que faço.
Sei que há um «eu» que me trouxe aqui, sem ao menos o conforto de uma ideologia que sinta minha, de uma causa a que chame própria, de uma pátria que me reclame. Patriota de pátrias adoptadas, pária por vocação, estrangeiro exilado de si, que nenhuma família em rigor reclama como seu.
Mas conheço também aquele que nestas linhas se confunde e se lamenta e tenta mostrar que perdido está, trancado num quarto de hotel, desejando que não toque o telefone, que nada suceda, que ninguém o convide.
O momento agónico da hora do almoço aproxima-se e com ele a descida necessária à casa de jantar. Fosse eu, nesse local de requinte, qual deck elegante de um navio, o solitário passageiro taciturno, aquele que a ninguém fala e de quem ninguém se aproxima, absorto na ausência como se num livro se concentrasse, indiferente e alheio. Pudesse, ao menos, essa categoria espectacular e trágica do homem só despertar, por um momento que fosse, o primeiro impulso do amor alheio que é a comiseração e a simpatia. Mas, trancado aqui e do mais isolado, resta-me o mundo fictício da minha literatura real, suas personagens e a promiscuidade dos seus actores.
Dei comigo esta manhã, como se no cansaço do longínquo tivesse encontrado a incapacidade de regressar, no cais do meu próprio desembarque eu fosse aquele que acena aquém da viagem, um interminável adeus a ter ficado.
Esgota-se-me a capacidade de sofrer, o absurdo da condição de homem dividido, estendendo a mão como aquele que, aqui por uma côdea de afecto, ali por um halo de ternura, numa esquina incógnita a aguardar e exaurir à saciedade, esgotados os sentidos, conseguisse com isso sobreviver.
Longe da pátria onde não nasci, do lar que nunca tive, resta-me o fio desta correspondência e a esperança morna que a recebam.
Talvez tudo tenha envelhecido a ponto de não haver mais do que, amanhã, o alçar a âncora lodosa de um cargueiro, o chiar retesado dos cabrestos e seu cordame, a maré a subir e com ela a hora de zarpar, orçando a bombordo primeiro em marcha a ré, e força a vante rumo ao norte mítico, ao equador da tranquilidade, à náusea de semanas apenas com o mar por companhia.
Recolheria pela tarde ao camarote. Talvez eu te tivesse então e a nudez reconfortante do teu corpo, a meu lado, na ânsia de dormir, dormir só e tão-somente, que há dias em que um homem desespera de si e se cansa do resto.
Ouve-me. Parece-me que tudo acabou. Ontem vi-me, como se num álbum de fotografias recordasse o longíquo parente, virando a folha, esquecido o nome, a memória ténue. Ontem vi-me ali, irreconhecível e de mim próprio incompreendido.
Em breve fecha a mala postal. Quando me leres sabe-se lá como estarei. Os deuses apiedam-se muitas vezes abreviando o mal real com a embriaguez do sonho. Bebamos pois à vida, sejamos do mais esquecidos e do resto indiferentes, no confinado espaço, a cadência salgada do mar na escotilha, batendo o ritmo do coração, os solavancos dos nossos corpos em viagem.
Espera por mim. Peço-te que leias os Laços de Família. É o que nos falta. Seremos uma, se eu voltar."


Muito tempo depois, relida a carta teria a certeza do que nela se dizia: o amor doloroso, feito da ausência ansiosa, pareceu-lhe, enfim, a felicidade possível, o máximo de todos os mundos. Momentos depois estaria na rua, todo o mundo de obrigações quotidianas à sua espera, daquelas que não fazem história nem mudam o mundo. Um desejo de que aquele infinito momento se pudesse prolongar tomou conta de si, o mar à vista, o céu a confundir-se com ele
[José António Barreiros, «Contos do desaforo», Ed. Presença, p.54-57]

Confesso...

... o «Adágio» é




[ seguindo o método do «Direito e Avesso», optei por ir nomeando um a um... :-) ]

Notas ao acaso

«Sofro a necessidade do amor, penso às vezes. E creio senti-la.
Sofro do amor sem partilha, decepcionado. Sofro de desânimo, de desejo, de desalento; sofro
.
Aperta-me, comprime-me a secura dos outros. O seu egoísmo, a sua insociabilidade, ou a sua falsa, interesseira sociabilidade, a sua dureza, a sua aridez, a sua volubilidade! Sinto-me repelida por tudo isto.
E não serei... não serei...
Haveria jamais amor que me contentasse?
Correspondência para a minha pobreza e ânsia?

Mas conquistada ela - com o que não sonho - não me sentiria liberta para me deslocar sempre, em corpo e em espírito, em realidade e em desejos?»
[Irene Lisboa, Solidão II, p.55]

A perfeição

«O Teo é perfeito e isso é terrível e luminoso no meio da imperfeição humana. Ele é perfeito por fora, o nosso filho, mas sobretudo por dentro, onde deve ter uma alma com uma exactidão e firmeza de geometria. Eu não sei se ele tem dúvidas, mas a perfeição também é um hábito com que se insiste e então não as tem.» [Vergílio Ferreira, «Em nome da Terra», Quetzal, pág.248]


«Um homem verdadeiramente bom é recto, como um quadrado, sem irregularidades» [ Aristóteles, «Ética a Nicómaco»]

A matéria primordial



«Dá-me a tua mão:
Vou te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois factos existe um facto, entre dois grãos de areia, por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo e aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio
[Clarice Lispector, «A Paixão Segundo G.H.», Relógio d'Água, p.79]

O medo

«E agora não estou tomando tua mão para mim. Sou eu quem está te dando a mão.
Agora preciso de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor. Como eu, não terás medo de agregar-te à extrema doçura enérgica do Deus. Solidão é ter apenas o destino humano.
E solidão é não precisar. Não precisar deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa, a coisa precisa da coisa: basta ver o pinto andando para ver que seu destino será aquilo que a carência fizer dele, seu destino é juntar-se como gotas de mercúrio a outras gotas de mercúrio, mesmo que, como cada gota de mercúrio, ele tenha em si próprio uma existência toda completa e redonda.
Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça - que se chama paixão.»
[Clarice Lispector, «A Paixão Segundo G.H.», Relógio D'Água, p.136]

A culpa

«(...) nós trazemos na alma a bomba e o problema está em alguém fazer lume para a rebentar. (...) Agora pergunto - se escolheram a maldição e alguém faz lume, quem é o culpado dela rebentar? Como é que um tipo é culpado de trazer uma bomba na alma se foi outro que a fez explodir? E como é que é culpado o tipo que fez o lume, se a bomba não era dele? Qual é a sequência da causa/efeito? Mónica, minha querida, eu posso perfeitamente dizer que a causa, que é o lume, está depois do efeito, que é a bomba. Mas já explico melhor, se valer a pena e não expliquei bem. A minha ideia agora é que o limite de tudo é o incognoscível. Mas temos de nos ir governado, como pudermos para não darmos em doidos e haver ordem na vida. A verdade de tudo há-de esclarecer-se no sem-fim. Mas temos de ser razoáveis para ir vivendo. Admitamos para já que o culpado é o que faz lume». [Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, pág.187 e 188]

«A melhor maneira de fugir é ficar parado.

É a fuga da presa que engrandece o caçador. O ficar imóvel é o mais astuto modo de enfrentar o predador: deixar de ter dimensão, converter-se em areia no deserto. Desaparecer para fazer o outro se extinguir.
A melhor maneira de mentir é ficar calado


[Mia Couto in «O Outro pé da Sereia»]

Conselho do avô

Ante o frio,
faz com o coração
o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o.
Quanto mais nu,
mais ele encontrará
o único agasalho possível
- um outro coração.


[Mia Couto, «A Chuva Pasmada»]

O criador e a criatura

«Tive de esclarecer a amável estranheza de Q. sobre o meu gosto de não ser conhecida.
Gosto e utilidade!
Mas não esclareci nada.
Tratava-se de atitudes literárias.

Escrever assim como escrevo, sem qualquer ambição de notoriedade, parece-me extraordinariamente útil. Mas não o sei pôr em liguagem clara! Por isso me embrulhei em evasivas. Desnorteei Q., que com a sua galantaria de lisboeta e de letrado, uma galantaria muito especial, me convidava a aparecer... Não sei onde, nem como.
Eu suponho, em boa verdade, que os anonimatos, que a folga e a inteligência dos anonimatos, se não podem definir bem. Que por si se justificam. Um anonimato é vital e elementar, espontaneamente útil; cobre as necessidade de cada um que o usa, esporádicas ou permanentes. Mas há quem tome o anonimato dos artistas por uma espécie de tarrafias, de gracinhas, de jogo ou de vaidade... E sê-lo-à!
A mim, porém, qualquer coisa de mais grave e mais indeterminada me tem levado a adoptar o anonimato, os pseudónimos. Talvez um subtil espírito utilitário, de defesa. De inversão da arrogância, da combatividade, também. De timidez, ou de fuga à responsabilidade intelectual, ainda... Não posso precisar perfeitamente o que seja! Eu julgo ter ainda sobre tudo isto, levemente contingente e exterior, a fugir-lhe... uma noção de que à obra de arte, reservada, independente, se pode ligar toda a indeterminação que lhe apraza, que lhe quadre!
Que significa um nome de autor? Nada! À roda destas coisas ligeiras que eu aproveito para meus temas literários, porque não há-de flutuar um dos meus nomes de ocasião? Tanto faz que seja X o protagonista, como X o seu explorador...
A literatura teve sempre muito de aberrativa, de fantasista. Nomes, pseudónimos, têm absolutamente o mesmo valor das figuras e das localidades. Não valorizam as obras.
E sendo a minha análise sempre tão cingida ao passageiro, sendo uma espécie de exploração da rápida eventualidade, não poderá admitir, com sofrível elegância, com propriedade, a variedade dos pseudónimos?
Este meu escrever sobre 'nadas', creio que até me chega a dar uma absoluta indiferença pelas 'categorias' literárias! Me desinteressa de todo o rang e classe... Me inquina cada vez mais de uma corajosa e perversa paixão de liberdade.
Os pseudónimos não me encobrem dos profissionais das letras, naturalmente!
Mas o mundo deles não é o meu...
O meu, o que por mim se interessa, com boa ou ruim humanidade, não é de letrados nem de artistas, nem sequer de gente de boa sociedade. É de gente de letras grossas! Grosseira, talvez, mas nem melhor nem pior que outra.
Se eu assinasse com o meu nome civil as bagatelas que escrevo, por quem é que seria tomada? Por uma extravagante, por uma deformada. E os que têm confiança em mim, deixariam de a ter.
Devo ser prudente. Com a minha gente é que me tenho sempre encontrado, dela é que eu sou um ruim e claudicante membro, mas ainda assim, não desprezado... Esquecê-lo, seria ingratidão.»

[Irene Lisboa, «Solidão» I, Editorial Presença, pág. 89 e 90]

Egos

«As pessoas bem bem lá no fundo são todas uns mundos que passeiam em órbita sem quererem instintivamente tocar nas outras. Têm de respeitar-se as regras de trânsito, como nos jogos, ao menos isso, estabelecer leis, codificar a natureza rebelde, implacavelmente viva na luta» [Ruben A., «O mundo à minha procura», III vol, p.48]

Vim, para isto.

«Achei, enfim.
Estava folheando o diário de K.M. à procura de um pequeníssimo quadro, de que me lembrava e me parecia falso, benévolo, fantasista.
Apraz-me rectificá-lo.
São poucas as frases de lá. É um quadro verbal. Suponhamos que é isto:
Vim, diz ele.
E ela: sim?
Para isto... diz ele ainda, e puxa-a para si.
Ela, impressionada, sente-se desfalecer.
A minha rectificação pode vir a ter um ar tão gratuito como a fantasia de K.M., mas para mim é a minha... aquilo que sobre o facto admito ou penso. Enfim, anulo a precipitação dele e o pronto desfalecimento dela.
Ele chega, sobre as escadas. Nestas escadas não há espécie de mistério, nem tão pouco na terra nem na rua. Em parte nenhuma se manifesta, se respira aquela atmosfera pesada e excitante, que costuma animar a literatura irrealista.
Ele chega, ela espera-o. Espera-o sem feliz inquietação nem consolo. É uma mulher desconsolada. Pensa que ele não venha, que já não apareça; espera-o sempre sem confiança.
Mas para ele foi preparando uma infinidade de pequenas coisas graciosas, de que ele nunca se aperceberá. Deu-se a tarefas sucessivas, como as noivas. Espera-o com indiferença e tenacidade, é curioso! E despreza-o. Como o não conhece muito tem a impressão de que ele é caprichoso e também venal. Mas apesar da insegurança que sente, e da sua resistência, acha que ele representa muito para ela, que representa o mistério... É a luz e ela a borboleta cega.
Enfim, ele chega. O seu toque com os nós dos dedos à porta surpreende-a. Abre-lhe a porta e ele entra, mas de repente. Tão furtivamente, porquê? Ela pensava que lhe havia de ir abrir a porta em baixo (o fecho estava escangalhado), que não acenderia a luz, que ele a beijaria na escada... Tudo fatalidades, preconcebidas e agradáveis, como as do pequeno quadro de K.M.
Mas não! Ele entra rapidamente, embora sem intimidade, mostrando-se desde logo intruso. Depois apertam-se as mãos e sentam-se. A casa é pequena e faz frio. Os joelhos dele tocam os dela. Ela faz-lhe perguntas sem importância nenhuma, de amabilidade. Ele pouco fala. Vem de longe... Ri. É engraçado, realmente, um pouco estranho, um pouco esquivo. Ela sente-se desconcertada. Ele olha-a, diz-lhe coisas soltas sem pensar, e chega-se mais. Afinal viera... o coração dela mirra. Sente-se tão pouco desenvolta! Aceita tudo, desconsolada. Um abismo os separa, um abismo! E nem ele nada quer dela, mas beija-a. E beijando-a se excita.
Mas como se tinham beijado já? Nunca assim. Como se tinham beijado naquelas noites de Outono... sobretudo numa tão formosa, tão longa e tão estrelada, que ainda lhe parecia desgarrada, única? Nunca assim...Sem se importarem com o tempo! Com gosto perfeito ou imperfeito, sincero ou iludido, mas com uma sensação tão empolgante de desejo! Uma sensação tão rara de ânsia e de sofreguidão! Não se tinham dado um ao outro, ele negara-se, mas tinham-se doidamente beijado e desejado. Embriagado de enervamento e de cansaço.
E agora? Ele ali estava, mas como um desconhecido. Era um imoral, um céptico. Por fim ela põe-lhe levemente as mãos na cara. Fita-o muito de perto. Os olhos assim vistos fascinam. Parecem presos e mais largos, dominados... Os olhos dela, tristes, seguem o movimento vagaroso dos dele, a sua expressão ora paciente, ora maliciosa. Por fim uns e outros se cansam.
Mas se uma pequena palavra, um pequeníssimo acordo de intimidade se estabelecesse...
Ele sempre fala. E que lhe diz?
Umas coisas tão mesquinhas e tão calculadas! Tão inúteis, e mesmo tão vexatórias!
Ela, pisada, arrefecida, ouve-as.
Para aquilo viera... Há cobardia na sua atitude. Mas para quê ter vindo? Só para a ofender e humilhar?
O cálculo dos homens! As suas desculpas! Sempre e só o cálculo...
Aquela amargura que ela sentia não era nova. Não, não era. Ela conhecia-a, parecia-lhe que já desde a eternidade... Os homens abusavam dela, da sua real inocência.
E chorou. Caíram-lhe as lágrimas pela cara abaixo. Mas logo uma súbita secura a impassibilizou. Envergonhou-se de ser fraca.
E ele voltou a beijá-la. Talvez que a desculpar-se. Por fim beijaram-se com teima. E ele ficou.»
[Irene Lisboa, «Solidão», I volume, Editorial Presença, pág. 39-41]

Escuridão

«Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - a floresta.» [Clarice Lispector, «Felicidade Clandestina»]

A causa depois do efeito

«Sim, sim, Mónica. A causa depois do efeito. A minha tese é esta, minha querida - nós trazemos na alma uma bomba e o problema está em alguém fazer lume para a rebentar. (...) Alguns têm a sorte ou a desgraça de alguém fazer lume para rebentarem o que são, ver-se o que estava por baixo do que estava por cima. Mas outros vão para a cova na ignorância. Às vezes fazem ensaios porque a pressão interior é muito forte. Ou passam a vida à espera de um sinal, um indício elucidativo. Ou passam-na sem saberem que trazem a bomba na alma que às vezes ainda rebenta, mesmo já no cemitério.» [Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, pág.187]

Amar no absoluto

«E devagar, ao centro de convergência de toda a bruta inquietação, rígida a procura do teu abismo interior. Refreio o ímpeto, quero entrar com a consciência difícil do que procuro, o impossível do teu ser. Rebento no limite de reter-me no sofrimento. Mas quero entender, entender. O modo único de nada me escapar ao prazer de ti. Do mistério irritante do que acontece no amar-te agora por sobre quanto te amei. Entender. Amar-te na conglomeração de todas as vezes e formas e impossível em que te amei. Mónica, minha querida. Minha doença insuportável. Porque o teu corpo não é só o teu corpo. Não é isso, não é isso. É entrar em ti, e a tua pessoa estar lá, seres tu ainda no íntimo de te tocar e estares aí como no teu riso, na tua presença. Seres tu ainda quase reconhecível como se não soubesse que eras tu e entrar em ti e reconhecer-te como se aí fosses reconhecível. Preciso de entender, não te vou agora amar à toa. Seres por dentro única como nas impressões digitais. Saber que és tu, mesmo sendo cego e surdo. Entrar em ti e tu estares toda lá dentro como estás por fora. Tocar o intransmissível de ti, reconhecer que és tu, inconfundível, no igual do teu íntimo ao de toda a mulher. Porque tu és tão diferente. No riso no ar na voz, na totalidade do teu corpo. E sentir que isso tudo é lá também esse tudo. Diferente na sua igualdade. Entrar em ti e ir reconhecendo pouco a pouco no meu entrar a mulher que amo até à estupidez. Reconhecer encontrar dentro o que amei fora. Nunca te amei toda, vou-te amar o que sempre faltou. Nunca te amei tudo, aproveitei sempre uma fatia de te amar. O teu olhar, o teu riso, a exemplaridade do teu corpo, o seu espectáculo, o encantamento às vezes, o teu andar, o prazer rápido, o prazer trabalhado para te submeter a tê-lo. Coisas assim avulsas. Vou-te amar agora, vou-te amar no absoluto. Amar-te no prazer e rebentar.» [Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, pág.143]

Paixão

«"Esta" - se disse o homem ajoelhado como antes de ir para a guerra - "esta é a minha prece de possesso. Estou conhecendo o inferno da paixão. Não sei que nome dar ao que me toma, ou ao que estou com voracidade tomando, senão o de paixão. O que é isso que é tão violento que me faz pedir clemência a mim mesmo? É a vontade de destruir, como se para este momento de destruir eu tivesse nascido. Momento que virá ou não, a minha escolha depende de eu poder ou não me ouvir. Deus ouve, mas eu me ouvirei? A força da destruição ainda se contém um instante em mim. Não posso destruir ninguém ou nada, pois a piedade me é tão forte como a ira; então eu quero destruir a mim, que sou fonte dessa paixão. Não quero pedir a Deus que me aplaque, amo tanto a Deus que tenho medo de tocar nele com meu pedido, meu pedido queima, minha própria prece é perigosa de tão ardente, e poderia destruir em mim a imagem de Deus, que ainda quero salvar em mim."» LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999