O primeiro

Relembro-nos ocultos sob a pérgula de glicínias.
A luz pingava suspensa em cachos de lilás.
Sentíamo-nos submersos num líquido turquesa
onde os gestos morosos subaquáticos pareciam
brancos e nus.
A aproximação dos lábios
teve a lentidão dos moluscos marinhos.
O teu braço cingiu-me a nuca,
as minhas mãos perderam-se no infinito
e o mundo parou assim...

Só há um beijo válido: o primeiro.
É puro, de mármore, eterno.
Merece uma estátua no meio do jardim.

Paulo Assim, Celulose, Lugar da palavra, p.19


Depois da noite

Olhos de maio rios muito claros
trazendo soltos seixos de um cinzento
que em breve se mistura de silêncio
brando. É tarde pra movê-los

do meu rosto ao teu que trouxe dedos
desprendê-lo da minha boca ébria
que a dizer-te se liberta a pouco e pouco
esta alegria. Fosse haver

depois da noite um dia sucessivo
não feito mais do que se permitir
ser tudo para nós e não mover-se
nunca o sentimento de deixar-te

sendo completo porque não termina
todo o amor que fica por fazer. 

Alberto Soares, Escrito para a noite, INCM, p.44



Condição de mulher



Recordava como, no tempo em que era homem, exigia das mulheres que fossem obedientes, castas, perfumadas e primorosamente ataviadas. «Agora vou ter que pagar na minha própria carne esses desejos», reflectiu; «porque as mulheres não são ( a ajuizar pela minha breve experiência de pertença ao sexo) obedientes, castas, perfumadas e primorosamente ataviadas por natureza. Só podem alcançar essas graças, sem as quais não gozam nenhum dos prazeres da vida, mediante a mais enfadonha disciplina. Há o penteado», pensou, «que só por si me vai roubar cada manhã uma hora; há o ver-se ao espelho, mais uma hora; há o espartilho e as rendas; o banho e o pó-de -arroz; há o mudar de vestido, trocando o cetim pela renda e a renda pela seda; há o ser casta todos os dias do ano...». Aqui bateu o pé com impaciência, exibindo uma ou duas polegadas da perna. Um marinheiro empoleirado no mastro, que por acaso olhou para baixo neste instante, sobressaltou-se tão violentamente que perdeu o pé e só por um triz se salvou. «Se ver os meus tornozelos pode custar a vida a uma honesta criatura que com certeza tem mulher e filhos para sustentar, manda a mais elementar humanidade que os traga sempre cobertos», pensou Orlando. As pernas eram, porém, um dos seus maiores encantos. E pôs-se a pensar na bizarra situação a que se chegou quando a mulher é obrigada a cobrir os seus encantos para que um marinheiro se não despenhe do topo de um mastro. «Que os leve a peste!», disse, dando-se conta, pela primeira vez, daquilo que noutras circunstâncias teria aprendido desde criança, ou seja, das sacrossantas responsabilidades da condição de mulher. 

Virginia Woolf, Orlando - uma biografia, Relógio d'Água Editores, p.111-112;  imagem: Dino Valls, Catexis