Hvolsvöllur, Eyjafjalla, Islândia. (Fior Kjartansson/AFP/Getty Images), respigada aqui
Mágoas
Que já me magoaste me sossega
e por mágoas de então, que ainda passo,
peso das minhas faltas me carrega,
nem os meus nervos são de bronze ou aço.
Pois se em minha rudeza te abalei,
e tu a mim, o que infernal te oprime,
com ser tirano, tempo não gastei
pesando o que sofri pelo teu crime.
Ah, nossa dor nocturna em mim lembrasse,
bem fundo, quanto dói funda trizteza
e, como a mim me deste, te prestasse
bálsamo humilde à dor no peito acesa.
Torne-se um preço a ofensa que em ti vinha;
resgate a minha a tua, a tua a minha.
That you were once unkind befriends me now,
And for that sorrow, which I then did feel,
Needs must I under my transgression bow,
Unless my nerves were brass or hammered steel:
For if you were by my unkindness shaken,
As I by yours, you've passed a hell of time,
And I, a tyrant, have no leisure taken
To weigh how once I suffered in your crime.
O that our night of woe might have remembered
My deepest sense how hard true sorrow hits,
And soon to you, as you to me then, tendered
The humble salve which wounded bosoms fits!
But that your trespass now becomes a fee;
Mine ransoms yours, and yours must ransom me.
e por mágoas de então, que ainda passo,
peso das minhas faltas me carrega,
nem os meus nervos são de bronze ou aço.
Pois se em minha rudeza te abalei,
e tu a mim, o que infernal te oprime,
com ser tirano, tempo não gastei
pesando o que sofri pelo teu crime.
Ah, nossa dor nocturna em mim lembrasse,
bem fundo, quanto dói funda trizteza
e, como a mim me deste, te prestasse
bálsamo humilde à dor no peito acesa.
Torne-se um preço a ofensa que em ti vinha;
resgate a minha a tua, a tua a minha.
That you were once unkind befriends me now,
And for that sorrow, which I then did feel,
Needs must I under my transgression bow,
Unless my nerves were brass or hammered steel:
For if you were by my unkindness shaken,
As I by yours, you've passed a hell of time,
And I, a tyrant, have no leisure taken
To weigh how once I suffered in your crime.
O that our night of woe might have remembered
My deepest sense how hard true sorrow hits,
And soon to you, as you to me then, tendered
The humble salve which wounded bosoms fits!
But that your trespass now becomes a fee;
Mine ransoms yours, and yours must ransom me.
Vasco Graça Moura, Os Sonetos de Shakespeare - Versão integral, Bertrand, p.250-251
Cantiga
a esta cantiga velha:
Falso cavaleiro ingrato,
enganais-me:
vós dizeis que eu vos mato,
e vós matais-me.
enganais-me:
vós dizeis que eu vos mato,
e vós matais-me.
VOLTAS
Costumadas artes são
para enganar inocências,
piadosas aparências
sobre isento coração.
Eu vos amo, e vós, ingrato,
magoais-me,
dizendo que eu vos mato,
e vós matais-me.
Vede agora qual de nós
anda mais perto do fim,
que a justiça faz-se em mim
e o pregão diz que sois vós.
Quando mais verdade trato,
levantais-me
que vos desamo e vos mato,
e vós matais-me.
A palavra falada
William Shakespeare, Othelo,
James Earl Jones
Para MR, que no Prosimetron lembrou o Dia Mundial da Voz.
Histórias com galinhas
Gostaria de fazer um pequeno romance, uma apresentação e seu desdobramento, sem drama necessariamente, da maternidade das galinhas. Dos seus cuidados, passos, cacarejos, lições, calcar firme, de patas abertas e movimentos pausados, bicadas no chão apelativas ou demonstrativas, enquanto os tontos, mimosos 'pitos' doidejam inconscientes, transgressivos e entusiasmados, atordoados, neste mundo grande e novo que se lhes abre de meia dúzia de passos. As mães, sabedoras e educativas, não os largam, indiferentes aos estranhos.
Irene Lisboa, Solidão II, Editorial Presença, p.143
Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.
Clarice Lispector, Laços de família - Uma galinha, Livros Cotovia, p.27-29
Mediania
Demasiada lucidez é culpada num mundo de cegos, que com a cegueira se contemplam sem desastre de maior.
Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores, p.173
A característica própria de um homem corajoso é falar pouco e executar grandes acções. A característica de um homem de bom senso é falar pouco e dizer sempre coisas razoáveis.
Abade Dinouart, A arte de calar, Martins Fontes, p.14
Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores, p.173
A característica própria de um homem corajoso é falar pouco e executar grandes acções. A característica de um homem de bom senso é falar pouco e dizer sempre coisas razoáveis.
Abade Dinouart, A arte de calar, Martins Fontes, p.14
«Balada para un loco»
canção: Horacio Ferrer e Astor Piazzolla,
interpretada por Marina Cedro e Ricardo Urrutia;
ilustração: Josean Morlesín Mellado
Na Holanda o demónio está no meio das vacas
Hieronymus Bosch, Saint John the Baptist in the Wilderness, 1489-1505
Na Holanda é assim. O Demónio está no meio das vacas: não escreve poemas, não pode exercer os dons. Pensa, perde o nome. Quem esperaria dele que trabalhasse a terra ou protegesse as alimárias?
Herberto Helder, Os passos em volta, Assírio e Alvim, (4ª ed. emendada), 1980, p.17
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