Nun Komm der Heiden Heiland

Credo Poético

Pensa o sentimento, sente o pensamento;
que teus cantos façam ninho sobre a terra,
e quando, em voo, um dia ao céu se ergam
nas nuvens não se percam.

Precisam de sentir peso nas asas,
pois a coluna de fumo se dispersa;
algo que não é a música é a poesia;
só fica a que se pensa.

O pensado, não o duvides, é o sentido.
Sentimento puro? Quem nele creia
da fonte do sentir nunca atingiu
a veia mais secreta.

Não cuides em excesso da roupagem,
não de alfaiate, é de escultor tua tarefa,
não te esqueças que nunca mais formosa
que nua está a ideia.

Não o que a alma encarna em carne, lembra-te,
não o que forma dá à ideia, é o poeta,
mas o que encontra a alma sob a carne,
sob a forma encontra a ideia.

É o detrito das fórmulas que faz
que nos vele a verdade, rude, a ciência;
despe-a com tuas mãos e os teus olhos
terão sua beleza.

Busca as linhas de um nu, que embora trates
de envolver-nos no vago de uma névoa,
mesmo a névoa tem linhas e esculpe-se;
abre os olhos, não as percas.

Que os teus cantos sejam cantos esculpidos,
âncora na terra enquanto eles se elevam,
a linguagem é sobretudo pensamento,
pensada é a sua beleza.

Em verdades do espírito prendamos
as entranhas das formas passageiras,
que a Ideia reine em tudo, soberana;
esculpamos, pois, a névoa.

[Miguel de Unamuno, «Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea», selecção e tradução de José Bento, Assírio e Alvim, p.40-41
Nasceu em 1864 em Bilbau; aí estudou até em Madrid frequentar a Faculdade de Filosofia e Letras, onde se licenciou e doutorou, após o que regressou à cidade natal, onde exerceu o professorado e colaborou na imprensa. Desde 1891, fixou-se em Salamanca de cuja universidade foi professor e depois reitor, até, em 1914, ser demitido deste cargo, sem qualquer explicação, devido à sua incómoda posição política e religiosa. Aí continuou como professor até, em 1924, pela sua oposição à ditadura do general Primo de Rivera, ser demitido e desterrado para a ilha de Fuerteventura. Daqui fugiu no ano seguinte e fixou-se em França até 1930, apesar de , em 1925, ter beneficiado de uma amnistia que permitiria o seu regresso a Espanha. Em 1931 foi reeleito reitor da Universidade de Salamanca. Faleceu em 1936, chegando ainda a intervir na vida pública espanhola nos primeiros meses da Guerra Civil. Unamuno conheceu e amou profundamente a terra e a cultura portuguesas. Foi amigo de Junqueiro, Pascoaes, Manuel Laranjeira e Eugénio de Castro. Durante a sua vida, raros viram nele o grande poeta, admirando-o sobretudo como filósofo, ficcionista, cidadão corajoso e exemplar nas suas palavras e atitudes. Mas Unamuno foi, acima de tudo, um grande poeta, em busca de si próprio, «do sentimento trágico da existência», da 'sua' Espanha 'que lhe doía'.]

Pensamentos

É próprio do ser humano o amar até os seus ofensores. Chegarás a isso, se tiveres em mente: que são teus parentes; que caem em falta por ignorância, e não por vontade; que dentro de pouco estareis todos mortos, tu e eles; e acima de tudo, que te não fizeram realmente mal, pois que não tornaram a tua alma pior do que era anteriormente.
(VII, 22)

Deixa a falta a quem fez a falta.
(VII, 29)

[Marco Aurélio, Pensamentos, selecção, tradução e prefácios de António Sérgio, edições Ática/Lisboa, p.65-66]

Eu consisto, eu consisto.

«Então de súbito se acalmara. Nunca, até então, tivera a sensação de calma absoluta. Estava sentindo agora uma clareza tão grande que a anulava como pessoa actual e comum: era uma lucidez vazia, assim como um cálculo matemático perfeito do qual não se precisasse. Estava vendo claramente o vazio. E nem sequer entendia aquilo que parte dela entendia. Que faria dessa lucidez? Sabia também que aquela sua clareza podia se tornar o inferno humano. Pois sabia que - em termos da nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade - essa clareza de realidade era um risco: «Apagai pois a minha flama, Deus, porque ela não me serve para os dias. Ajudai-me de novo a consistir de um modo mais possível. Eu consisto, eu consisto.»

[Clarice Lispector, «Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres», Relógio de Água Editores, p.105]