Declaração de amor

A uma de duas Senhoras desconhecidas com uma declaração de amor

Inclinação semelhante à que vos tenho jamais a houve no mundo. Ignoro absolutamente quem vós sois, e ignoro da mesma forma o vosso nome. Sem embargo desta ignorância há vinte e quatro horas que vos amo, e já podeis contar um dia em que me fizeste padecer e suspirar. Sem nunca vos ter visto o rosto, o acho belo, e acho mui agradável o vosso discurso, sem que vos ouvisse falar. As vossas acções me encantam, e finalmente imagino em vós um não sei quê que me obriga a amar não sei a quem. Parece-me algumas vezes que tendes o cabelo loiro, e outras vezes me parece que o tendes negro. Julgo que sois pequena e ao mesmo tempo me pareceis grande pessoa. Pode ser que passeis da estatura a que chamamos mediana. Tenho assentado em que os vossos olhos são verdes, azues ou pretos, e também tenho assentado em que são duas estrelas por mais escuros ou pardos que eles sejam. De toda a forma que me figuro que sois, me pareceis muito bem, e sem saber qual é a qualidade da vossa formosura estou para jurar que é a mais encantadora e feiticeira. Se vós tendes tão pouco conhecimento de mim e me amais tanto como eu vos amo, tenho muitas graças que dar ao amor e aos astros; porém, para que não vos enganeis comigo e para que vos não sobressalteis quando me virdes, tendo talvez imaginado outra coisa, vos farei pouco mais ou menos o meu retrato. O meu talhe ou a minha estatura é pouco mais que medíocre. A cabeça uns dizem que é boa, outros que é má. O certo é que é curiosa, quando não seja por outro princípio que pelo ornato de cabelos brancos como a neve, misturados com outros negros cabelos, da cor mesmo do azeviche. Os olhos são doces e inquietos; já foram garridos e maganos, porém trinta e cinco Maios que têm visto lhes têm abatido essas qualidades, as quais se eram boas vão-se cansando. Com a minha boca e com a minha língua todos têm que fazer, porém são duas coisas  de que até agora se têm queixado somente alguns indignos, viciosos e insolentes, que levantam o testemunho que a minha língua corta como uma navalha. Não temais a falsidade, executai as experiências em que levardes gosto, e vereis que a dita língua, além de ser de carne como todas as outras línguas, é delicada, branda e suave. Finalmente toda a minha cara é diferente de todas as que tendes visto até agora. Uma das vossas amigas vos dirá que eu sou um galante moço. O certo é que para amar três ou quatro formosas ao mesmo tempo, ninguém o faz mais fielmente do que eu. Se vos satisfazeis com estas qualidades, podeis contar que são vossas, pois que as ofereço sinceramente.
Entretanto cuidarei em vós sem saber em quem cuido, e se alguém me preguntar por quem suspiro, não temais que eu o declare, persuadindo-vos com prudência a que eu vos não conhecerei enquanto não souber quem vós sois.
Eu sou verdadeiramente,

Viena de Áustria, 22 de Novembro de 1736

Cavaleiro de Oliveira, Cartas, I, 46, selecção, prefácio e notas de Aquilino Ribeiro, Livraria Sá da Costa Editora, p.103-104
 
 


jacques brel - la chansons de jacky

«Vive como se...»


A vida é curta e é pecado perder o seu tempo. Sou activo, diz-se. Mas ser activo é ainda perder o seu tempo, na medida em que nos perdemos. Hoje é um descanso e o meu coração parte ao encontro de si próprio. Se uma angústia ainda me estreia, é a de sentir este impalpável instante escorregar-me por entre os dedos como as gotas do mercúrio. Deixai, pois, aqueles que querem voltar as costas ao mundo. (...) Posso dizer, e direi daqui a pouco, que o que conta é ser humano e simples. Não, o que conta é ser verdadeiro e então, tudo aí se inclui, a humanidade e a simplicidade. E quando posso eu ser mais verdadeiro do que quando sou eu o mundo? Sou satisfeito antes de ter desejado. A eternidade está ali e eu esperava-a. Já não é ser feliz o que eu desejo agora, mas apenas ser consciente.
Um homem contempla e o outro cava o seu túmulo: como distingui-los? Os homens e o seu absurdo? Mas aqui está o sorriso do céu. A luz aumenta e breve será o Verão? Mas aqui estão os olhos e as vozes daqueles que é preciso amar. Estou preso ao mundo por todos os meus gestos, aos homens por toda a minha piedade e o meu reconhecimento. Entre este direito e este avesso do mundo, eu não quero escolher, não gosto que se escolha. As pessoas não querem que se seja lúcido e irónico. Eles dizem: «Isso mostra que não és bom.» Não vejo a relação. Decerto oiço dizer a uma delas que é imoralista, traduzo que ela tem necessidade de atribuir-se uma moral; a outra que despreza a inteligência, compreendo que ela não pode suportar as suas dúvidas. Mas porque eu não gosto que se faça batota. A grande coragem é ainda a de ter os olhos abertos para a luz como para a morte. Além disso, como explicar a ligação que leva deste amor devorador à vida a este desespero oculto? Se escuto a ironia escondida no fundo das coisas, ela descobre-se lentamente. Piscando o olho pequeno e claro: «Vive como se...», diz ela. Apesar de muitas pesquisas, aqui está toda a minha ciência.

Albert Camus, O avesso e o direito, Editora Livros do Brasil, p.75-76.