Não posso adiar o amor


[imagem da Nasa]

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração
.

[ António Ramos Rosa ]

...le verbe aimer...

Un baiser, mais à tout prendre, qu'est-ce ?
Un serment fait d'un peu plus près, une promesse
Plus précise, un aveu qui veut se confirmer,
Un point rose qu'on met sur l'i du verbe aimer;
C'est un secret qui prend la bouche pour oreille,
Un instant d'infini qui fait un bruit d'abeille,
Une communion ayant un goût de fleur,
Une façon d'un peu se respirer le coeur,
Et d'un peu se goûter, au bord des lèvres, l'âme !


[Edmond Rostand, «Cyrano de Bergerac»]

Fora da medida

Naquela hora em que chorei, vexada, sozinha, sentada, a meio da tarde?
É sempre assim que se ressumam as duas ou três lágrimas presas, de finalização de um sentimento... Dos rápidos sentimentos brincados, que mal têm significação, que nos atribuímos por desporto amargo.
É verdade! Eu gosto de pensar, mas à custa dos outros, à custa dos seus movimentos, do seu jogo de vida...
Mas furtam-mo, furtam-mo!
Furtam-mo desta maneira: acham-me imaleável para tomar nele uma boa, uma airosa e consentânea parte.
Sou dura, abrupta. E tão dura quanto repentista, simplória, ingénua, desprevenida. Acompanho mal... atribuo fora da medida. E a uma hora do dia, calha à tarde, calha à noite, as minhas duas lágrimas de liquidação vêm-me.
Tenho um círculo de solidão! Nada o preenche. E o pouco que nele entra, sai... Sai escorraçado. Sempre indigno de lá ter entrado.
Mas afinal, o que ontem deixei por dizer?
Este assunto do R. cansa-me. De todas as cores que teve, já quase não tem nenhuma.
As pessoas afastam-se de nós, nós despegamo-nos delas... e o que havia a dizer, desfez-se!
Às vezes penso, pensava: quem importa aqui?
Eu... amolecida e curiosa, desperta, depois deprimida? Talvez.
Da pessoa dele, o essencial escapou-me. É isso que me desgosta.

[Irene Lisboa, Solidão II, Ed. Presença, p.78]

No fim

«Estava nisto quando recebo um telegrama de Tina - sua mãe morreu. Ou antes, não recebi, eu estava no jornal, vim já tarde para casa. Foi o Miguel que o recebeu e mo meteu entalado no disco do telefone. Sua mãe morreu - Tina. (...) Estarei triste? Não sei. Ou antes. De vez em quando a súbita iluminação que estou mais só. Reinventar a vida desde onde já a reiventara. Mas provisoriamente. (...) Porque eu queria uma relação clara com o facto da morte da minha mãe. Não tenho. Uma relação que passasse através do mito convenção parece bem. Não o sei. E todavia estou triste. Sofro. Mas não sei em que sítio de mim o sofrimento é verdadeiro como num pôr do Sol o Sol, acima ou abaixo do horizonte, e entretanto cheguei à estação.» [Vergílio Ferreira, «Até ao Fim», Quetzal, p.109-110]