A alma dos ricos

Concurso hípico, Lisboa, 1928 - Mário Novais, Biblioteca de Arte-F.C.G.


«Não é raro que as raparigas muito ricas escolham maridos pobres e que as limitem nas ambições. Chama-se a isso voltar ao pão seco, que pode constituir um desejo inspirador nas mulheres.
 O pai das duas meninas (havia também um rapaz, Eduardo) pertencia ainda à classe dos industriais de pano branco que se estendiam pelas margens do rio Ave com uma regular variedade de apresentação. Uns eram ricos com obstinação da consideração social, obtinham um título papalino e faziam-se solitários na sua terra onde o passado modesto lhes pesava como chumbo. Outros, como no caso de Amílcar da Barca, nunca rejeitavam nem os gostos nem as fraquezas, fiéis aos pratos tradicionais e ao pão de milho com chouriço. Educavam tão bem os filhos que se lhes tornavam estranhos.
Contudo o Amílcar da Barca teve o critério romanesco de se casar com uma Silva de Lanhoso, esta de casa apalaçada cujos telhados estavam uma ruína. A ruína dos telhados leva às vezes a alianças inesperadas.
As Silva Lanhoso eram de facto boas mulheres, mas completamente intragáveis quando se tratava de etiqueta. Tinham sempre um moço ao lado que levava o banquinho para os pés, na missa, e a escalfeta para o teatro. Chamavam-lhe o mandarete. Ninguém falava à mesa antes de a Silva se assoar estrondosamente depois de comer a sopa. Não era uma déspota; era um relógio de carrilhão.»

Agustina Bessa-Luís, «O Princípio da Incerteza - A Alma dos Ricos», Guimarães, p. 11

O beijo

O beijo é só uma palavra
escolhida
ao acaso. O que as tintas
encobrem e descobrem
e os pincéis revelam,
mas não nomeiam,
é a ordem
que se pressente
em todas
as nebulosas. Que sempre
a ordem precede
a desordem. E essa
é uma das leis
indeclináveis
do amor. A sua regra
de ouro, que não admite
excepções.

(do livro «As imagens e as legendas», a propósito de
«O beijo» de Gustav Klimt )


Há felizmente o estilo




- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isto. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã, num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida apresenta-se ali como algo... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é a maneira subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade e significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? De uma dessas tremendas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?