Apodrecer

Apodrecer é simples: basta
ceder do coração apenas
a parte mais sombria.

Guardar o resto para inúteis
coisas que não acontecem.


respigado aqui

A simpatia


«Nunca teve uma súbita necessidade de simpatia, de auxílio, de amizade? Sim, com certeza. Eu aprendi a contentar-me com a simpatia. Encontra-se mais facilmente e, depois, não nos impõe nenhum compromisso. "Creia na minha simpatia", no discurso interior, precede imediatamente "e agora ocupemo-nos de outra coisa". É um sentimento de presidente do Conselho: obtém-se muito barato depois das catástrofes. A amizade é menos simples. A sua aquisição é longa e difícil, mas, quando se obtém, já não há meio de nos desembaraçarmos dela, temos de lhe fazer frente.» 
 
[Albert Camus, «A Queda», Editora Livros do Brasil, p.27]

Vingança


SHYLOCK - Para iscas! E se para mais nada servisse, servia para eu saciar o meu ódio. Aos seus motejos devo o desprezo que sobre mim pesa; não fora ele, mais milhão e meio teria ganho. As minhas perdas eram motivo para o seu escárnio; zombava dos meus lucros, insultava a minha nação, contrariava as minhas operações, roubava os amigos e animava os meus inimigos, e porquê? Porque sou judeu! Não terá ele olhos, não terá ele também mãos, um corpo, órgãos, sentidos, afeições e paixões, nutrir-se-à ele diferentemente, não é ele vulnerável como os cristãos, não o molestam as mesmas queixas, não o curam os mesmos remédios, não tem nele igual acção o frio do Inverno e o calor do Verão? Fira-me, e o meu sangue gotejará como o do cristão; o contacto inesperado dos seus dedos far-me-ia estremecer como qualquer cristão; se me ofender, como ele me vingarei. Homens como vós, qual é pois a diferença que há entre nós? Qual é o resultado, se um hebreu insultar um cristão? É este vingar-se. Quando um cristão insultar um hebreu, qual deve ser a consequência? Imitá-lo, vingando-se também. Ensinaste-me a perversidade, ó cristãos, asseguro-vos que a aprendi; servir-me-ei dela, e se puder excederei os meus mestres.

[William Shakespeare, «O mercador de Veneza», edição bilingue, tradução de D. Luís de Bragança, colecção livros de bolso da Europa-América, p.59]

A trança

Prédio de esquina moderno com varandas de cimento oblongas como grandes banheiras. Terceiro andar esquerdo. Salão Cleópatra.
Entrava-se pelas traseiras, que as portas da frente eram ocupadas por um capelista.
Na estrada, acocorados ao longo dos passeios, operários indígenas trabalhavam no calcetamento. E, de quando em quando, a voz do capataz rasgava o ar, áspera de comando.
Cinco horas da tarde. O elevador subia através de terraços brancos de sol com meninos nus e roupa a secar.
À porta, já cheirava a 'shampoo', a cosmético, a perfumaria.
Da salinha de espera, toda em cretone de desenho geométrico e rosas artificais, passava-se a um cubículo onde uma rapariga magra, de voz humilde, tratava da lavagem dos cabelos.
Mas a sala do cabeleireiro, a principal, a do canto arredondado da casa, guardava todo o interesse da história.
O artista, homem novo, algo obeso, coxeando acentuadamente, aparecia de costas, absorvido no penteado das clientes.
Podia-se vê-lo também em fotografias várias, compondo lindas cabeças de cabelos curtos como quem dispusesse flores em vasos. As fotografias surgiam pelas paredes, pelos tocadores, no pequeno vestíbulo, entre o aroma das loções, o cheiro ácido do estanho aquecido, o bafo dos secadores. O rosto do homem, porém, não se revelava em nenhuma delas. Só os ombros largos, o busto curvado, o gesto cuidadoso.

Sensação sempre deliciosamente renovada: o soltar dos cabelos.
A água tépida afagava.
Vinham à memória litografias do tempo da infância, em baús no sótão, com as ninfas dos lagos de cabelos húmidos e verdes.
"Menina, não ande de cabelos desatados. O demónio arma sarilhos com eles, rodopios, tentações..." A boca desdentada e agoirenta da velha Águeda ditava conceitos com figura de pecados.
O corpo atirado para trás como quem se abandonasse. Os dedos da rapariga magra que passavam e repassavam. O perfume macio do 'shampoo'.
Depois, o salão.
Aí era-se assaltado por algo de fantástico, uma espécie de conto de sortilégio e alquimia, com boiões de elixires coloridos, frascos de essências, caixas de pó, espelhos, pinças, pomadas. A noite africana chegando num ímpeto: uma aparição. A luz anilada das lâmpadas.
À volta, de cabeças coroadas de 'bigoudis', muito quietas, as senhoras lembravam bonecas enormes em exposição.

O mágico começou a abrir os cabelos compridos da nova cliente, muito de manso, ao jeito de quem esfiasse seda. Eram cabelos pretos, tão pretos que se diriam azuis, luzidios, lisos.
- Que maravilhosa cabeleira, 'madame'!
Não se esperavam daquele corpo irregular palavras assim gentis.
Ela contemplava no espelho o rosto do homem: traços finos, olhos claros, madeixa fulva para a testa. Uma cabeça que não pertencia àquele tronco. A cabeça de um deus!
Ágeis, as mãos escovavam, acamavam, compunham a cabeleira farta e longa. A face de Apolo compenetrava-se.
- Como sou pouco para este cabelo, 'madame'!
As bonecas dos 'bigoudis', nos assentos giratórios, voltavam-se mecanicamente, um ar curioso nos olhos de vidro.
O homem erguia agora a massa dos cabelos que lhe ocultava os braços. Experimentava enrolá-los na nuca. Ruborizava-se.
Ela sorria por dentro. Quantas vezes tinha acontecido aquilo? E com quantos cabeleireiros? Com aquele, todavia, não sabia explicar, mas era diferente. Os olhos dele, de tão límpidos, comoviam-na. Apetecia-lhe dar-lhe alguma coisa, dar-lhe os cabelos.
Da janela veio a fala nasalada do papagaio: «Que bela!»
A manicura, menina mulata, largou uma gargalhadinha.
A cabeleira desprendia-se, pesada, ia-lhe vestindo ombros e ancas, e, ao longo dela, as mãos do homem, muito brancas, lembravam borboletas adejando no capim ao sol, estonteadas, sem saber onde pousar.
Ao mesmo tempo emocionante e ridículo o busto forte do homem a balouçar de uma lado para o outro, as mãos apanhando ali, soltando acolá, inutilmente esforçadas, vencidas. O rosto bonito amuava. A fronte perlava-se de suor. E a noite de África (que as varandas abertas acolhiam inteira) a ajudar naquele teatro, a noite africana.
Ela fechou os olhos. Via-se a tomar banho nas águas mornas da baía. Havia lua. Um golfinho brincava-lhe com os cabelos que já não eram dela mas do mar. O golfinho a enredar-se neles, aturdido, sufocado. Ela a sentir que mais valia salvar o golfinho e perder os cabelos.
Despertou-a um murmúrio:
- 'Madame', gostaria que me ajudasse... A verdade é que já não aparecem clientes com penteados assim...
No ar, um silêncio espesso como nódoa de brilhantina.
Veio desfazê-lo a voz da mulher:
- Corte a trança. Faz-me tanto calor ultimamente.
O homem hesitou. Fixou o espelho.
A expressão dela era calma:
- Corte.
Ele pegou nas tesouras. A mão tremia-lhe como se pela primeira vez fizesse aquilo. Não compreendia nada. Não alcançava tamanho capricho.
Um ruído monótono, talvez o do bicar do papagaio no poleiro de lata, sublinhava, irritante, o zumbido dos secadores.
Dobrados os cabelos na toalha, as tesouras rangeram. Não demorou um minuto. Ouviu-se um suspiro.
Sem palavras, ele tomou um papel e embrulhou a trança.

A empregava escovava o vestido de 'madame'. O semblante do homem era intrigado, sério, e de desgosto. Podia-se imaginá-lo, em casa, a contar de uma cliente incompreensível que lhe dera tanto trabalho com os cabelos compridos, para acabar, inesperadamente, por os mandar cortar.
A trança, a esplêndida trança que de tão preta parecia azul, agora um despojo sem vida no retalho de papel pardo, a trança que o cabeleireiro entregava à dona.
Desta vez cabia-lhe a ela corar. Seria que ele não percebera? E, no entanto, aquela era sem dúvida a cabeça de um deus.

Na rua, o vento da noite veio abraçá-la. Tão bom essa carícia fresca, odorosa de sal, na pele, na carne.
Negros, rostos confundidos com as trevas, voltavam do trabalho aos magotes, conversando em quimbundo. As negras traziam filhos às costas. Os holofotes dos carros acendiam-lhes brilhantes nas órbitas, na tez suada.
Devagar, e de trança na mão, a mulher seguia como sem rumo. E o seu gesto rimava com as sombras, com o mistério da hora, com as coisas que não têm explicação.

[Maria Ondina Braga, «A Rosa-de-Jericó, contos escolhidos», Caminho, p.119-123]