O 13

«Talvez porque nascida numa sexta-feira dia 13, costumava interrogar-me se tal não teria interferido em meu pai perder o emprego. Infantis essas minhas congeminações e esses medos. A adolescência. Era a adolescência. Idade parece que procípia a nos supormos a mais no mundo. Um "a mais", quanto a mim, o mesmo que "mal-grado meu".
Ana falava de como o marido chegara cedo, naquela manhã, e com um ar abatido, se deixara cair no cadeirão do quarto e escondera a cara nas mãos: "Despedi-me... Estou desempregado.»
Era uma empresa bancária particular que recebia dinheiro em depósito e fazia empréstimos. Empresa pequena. Além de meu pai, o contabilista, um manga-de-alpaca tc-tc à máquina, e o chefe sujeitinho tão rude como refalsado. O pai propusera aumento de salário, trabalhava duro e ganhava uma ninharia, impossível continuar em semelhantes condições. O patrão, no entanto, a desconversar, a trocar-lhe as voltas, cínico, como se não se tratasse de assunto sério. Discutiram em seguida, conquanto que em vão. Desesperado, por fim, o guarda livros, largando a pasta no tampo da secretária e envergando o casacão, saiu porta fora.
Na poltrona aos pés da cama da mulher, arquejava, José. Errara, quando Deus quer... Devia ter considerado, pensado melhor, não se precipitar. Que afinal a família a crescer - e ainda bem, adorava crianças -, a crescer a família e os encargos, e ele, desgraça das desgraças, desempregado! Levantava-se. Tornava a sentar-se. Andava de um lado para o outro, pálido, perturbado. Ana a tranquilizá-lo. "Ora, tu tens carteira profissional." E conhecedor do ofício como poucos, e conceituado em toda a cidade, colocações não haviam de lhe escassear. Pegando-lhe na mão, afagava-o, a companheira. A mão muito branca, com anel de cachucho: um brilhante que, esfregado em flanela de lã, secava, o mesmo que dizer sarava um terçol num olho.
Chamando depois a empregada, a parturiente pediu-lhe que fizesse um chá. Chá de macela. Macela-de-S.-João, quinze flores para dois quartilhos de água a ferver e cinco minutos a abrir à cor. Tomaram então os dois a tisana por entre um total silêncio. Com o abalo, para mais após o parto, Ana começava a sentir-se indisposta, latejavam-lhe as fontes, sobreveio-lhe febre ao entardecer.
Eu tinha vindo ao mundo na véspera, 13 de Janeiro.
O tio, que na ocasião se encontrava em Lisboa, a falta que Luiz ali não fazia. Cunhados muito unidos, muito bem dados, esses. Fosse qual fosse o problema, o aperto, nenhum deles dispensando o parecer do outro.
(...)
Tempo em que as superstições, o que eram as superstições senão o pressentimento do que havia de vir e o sobreaviso? Nesse tempo e ainda hoje. Intervenção, aí, dos astros, dos elementos, da própria Natureza. Quando não da hora em que se nasce, do local onde se vive, da casa que se habita: o lado para o qual abre a porta da rua, as sombras, os ecos, as memórias da casa.»  


[Maria Ondina Braga, «Vidas Vencidas», Caminho, p.71-72 e 74]

Maria Ondina Braga nasceu no dia 13 de Janeiro, há setenta e oito anos, em Braga. Ao Ernane C.,  que teve a gentileza de chamar a minha atenção para este facto, aquele abraço!

Os belos monstros



«I want to do something for her... but what?»

Gary Trousdale e Kirk Wise, «Beauty and the Beast»

Ao «Almocreve das Petas»



Ao machucho poetarrão José Daniel Rodrigues da Costa


«Não presta Coridon, não presta Elpino,
Filinto é ninharia, é lixo Alfeno;
Albano fala só do Tejo ameno,
Só tardes e manhãs descreve Alcino;

Trescala aos Seiscentistas o Paulino;
Pois Bocage! Isso é peste, isso é veneno!» -
Roncava charlatão rolho e pequeno,
Pequeno em corpo, em alma pequenino.

- «Quem acha Voss'mecê (lhe sai dum lado
Taful do sério rancho das lunetas)
Quem acha para versos estremado?» -

- Quem?! (diz o tal) não façam lá caretas:
Um que dos seus papéis anda pejado,
O aguazil Daniel, cantor de petas».

Ao mesmo, publicando o «Almocreve das Petas»
 
Das Petas o Almocreve é obra tua,
Bem se vê,  Daniel, na frase e gosto;
Adiça três de Abril ou seis de Agosto,
É de quem vende as rimas pela rua.

Cheira a teu nome o roubo da perua,
E entre o tostado arroz o gato posto;
Eis a obra melhor que tens composto,
Inda que de artifício e graça nua.

A gente por Lisboa anda pasmada,
Vendo-te farto e cheio como um ovo
Dos alvos pintos, que te deu por nada.

E frio de terror murmura o povo
Que a tua estupidez anda pejada,
E que cedo se espera um parto novo.

Ao mesmo, dando à luz o segundo volume das suas «Rimas»

Tomo segundo à luz saiu das «Rimas,
Obra mui de vagar, mui bem composta,
E sujeita depois a doutas limas.

Fala em ópios, em manas, fala em primas,
Diz coisas de que a plebe não desgosta,
Morde em peraltas, na ralé disposta
A saltos, macaquices, pantominas.

Por estas e por outras que tem feito,
Verá qualquer leitor nas obras suas
Que ele para versar nasceu com jeito.

Acham-se em tendas, acham-se em comuas;
E para lhes aumentar honra e proveito,
As vende o próprio autor por essas ruas.

[pág. 139-140]

Caravaggio



Michelangelo Merisi da Caravaggio [1571-1610] é o autor deste David con la testa di Golia, presentemente em exposição na Galleria Borghese, em Roma. Fosse este o único quadro em exposição e ainda assim valia a pena a viagem. Não é, como se pode verificar aqui. Infelizmente, não vou poder ir até lá. Consolei-me com este documentário da BBC sobre a vida e obra de Caravaggio que encontrei no You Tube, em seis partes. Para quem tem o mesmo problema que eu, aqui ficam os links:
 

A Tempestade

«Deposed from his dukedom in Milan and cast out to sea with his daughter, Miranda, Prospero has a miraculous power over the island on which they have made their home. As the play begins, Prospero has used his art to bring about another shipwreck. This time his usurping brother and his colleagues are cast ashore, but through the power of magic, love and forgiveness, chaos is gradually transformed into order.» [texto da contracapa do livro «The Tempest», de William Shakespeare, Penguin Popular Classics, 2001]