«Gostava sim - porque não havia de gostar? era um luxo, um prazer do espírito - de fazer novelas. De tratar figuras e cenários, de falar pelos outros, escrupulosamente; de seguir pistas sentimentais.
Mas não tenho de as fazer!
A qualidade de desenvoltura artística não preenche os espaços, todos os espaços, de uma composição literária.
Histórias, saber contar histórias (mesmo nestas horas chatas e banais, vazias, do tempo individual) deve ser agradável. E ver depois que se contaram bem, muitíssimo agradável!
M. contou histórias novas. Sem bizararia. O seu mérito foi esse. Achou histórias para contar, e deu-lhes alma. Caiu aqui, levantou-se ali... mas carregou-as, insuflou-as de ardência, de espectáculo e de modéstica, de personalismo afectivo.
I. achou (foi lúcida) que era uma portuguesa. E que os portugueses são todos assim, mas porquê? desenganados, quase cépticos, deplorativos.
Sim, há excessivo subjectivismo, excesso de intromissão pessoal na narrativa dos portugueses. Põem-se demasiado ao espelho nas suas obras. Hábito? Moda fatalmente transmitida? Comodidade? Restrição de estilo?
Mas M. contou, soube contar coisas de grande afinidade, todas sujeitas a um nexo. Coisas de um lado, de uma janela da sua visão. E bateu-as, encheu-as dos seus sentimentos.
A vida, vista, presenciada, é plana, insinuosa, sem vulto. M. deu-lhe vulto; pela anedota? Sim, mas também pelo seu comentário e o fervor com que apresenta a anedota.
M. mostrou-nos a sociedade que conhece, mas com que não lida, com que se não comprometeu. Porque M. tem no seu livro muitos dos seus sentimentos e ressentimentos, mas não as suas atitudes, o seu espírito mundano, convivente, nem o seu 'savoir-faire'.
Esta é a grande dificuldade ou cautela do artista: dar-se, comprometendo-se. Deseja e foge a comprometer-se. O artista brinca sempre. Consciente e inconsciente. Defende-se dos outros, seus próximos. Dos outros e do seu próprio constrangedor, pesante, imediato ambiente.»
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Irene Lisboa, «Solidão II», Editorial Presença, 1999, p.92-93]