Vejo uma objecção a qualquer esforço para melhorar a condição humana: é que os homens são talvez indigno dele. Mas repilo-a sem dificuldades: enquanto o sonho de Calígula se mantiver irrealizável e todo o género humano se não reduzir a uma única cabeça oferecida ao cutelo, teremos que o tolerar, conter e utilizar para os nossos fins; sem dúvida que o nosso interesse será servi-lo. O meu processo baseava-se numa série de observações feitas desde há muito em mim próprio: toda a explicação lúcida me convenceu sempre, toda a delicadeza me conquistou, toda a felicidade me tornou moderado. E nunca prestei grande atenção às pessoas bem intencionadas que dizem que a felicidade excita, que a liberdade enfraquece e que a humanidade corrompe aqueles sobre quem é exercida. Pode ser: mas, no estado habitual do mundo, é como recusar a alimentação necessária a um homem emagrecido com receio de que alguns anos depois ele possa sofrer de superabundância. Quando se tiver diminuido o mais possível as servidões inúteis, evitado as desgraças desnecessárias, continuará sempre, para manter vivas as virtudes heróicas do homem, a longa série de verdadeiros males, a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não correspondido, a amizade recusada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta que os nossos projectos e mais enevoada que os nossos sonhos: todas as infelicidades causadas pela divina natureza das coisas.
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, trad. de Maria Lamas, Editora Ulisseia, p.98-99