Notícias fantasmagóricas corriam, de boca em fora, naquele domingo de Mercado, na aldeia de Estoi.
Os mortos da guerra já haviam sido condecorados, os da pneumónica já haviam sido chorados e, todos ambos, já haviam sido enterrados, pelo que, por via da caducidade deste palestral mote, urgia alcançar assunto fresco.
Quando muito, os mortos condecorados e chorados poderiam, ingrementes, dar temática para duas onças de conversa de "chacha", enquanto o padre Berucho sermoava a eucarística sermoa - pondo que esta não saísse aguardentada e de sexta-feira Santa.
Veio a pêlo esta ressalva porque as emborrachadas homilias de sexta-feira da Paixão, proferidas da caixa do púlpito, pelo padre Berucho, ajudado do Espírito Santo, tinham uma natureza e significado muito peculiares.
A proto-história desses afamados sermões começava ao lusco-fusco quando o sacerdote, assomando-se à porta da venda do Linquete, avistava os ranchos das suas devotíssimas paroquianas no acto de subirem as escadarias do templo, com o propósito de assistirem às fúnebres cerimónias do Senhor Morto. Inspirado por dois espíritos (o Santo, do Céu, e o da aguardente, da Terra) o padre, antes de retomar o robusto arrimo do balcão (comovido pela embevecedora visão das suas paroquianas a confluirem para a igreja enlutada) transmitia aos companheiros das tabernícolas fainas, ente engulhado vaticínio: "É mesmo esta noite que eu vou pôr aquele putedo todo a chorar!".
Numa das vezes, à laia de comentário a esta promissão, o Linquete, com a aprovação expressa do auditório, conceituou: "Não se afadigue no negócio da choradeira, senhor prior, não se afadigue, olhe que 'lágrima de sermão e chuva de trovoada, caem no chão e não valem nada' !"
Um tanto melindrado, o padre Berucho, compôs a resposta adequada ao axioma rimado do céptico Linquete, através de uma tirada apologética: "Fique sabendo, sr. taberneiro, que as lágrimas choradas por conta de Nosso Senhor são sempre sentidas, nem que venham dos olhos de um crocodilo!"
Não lhe sofrendo o ânimo que esta sacerdotal asserção pudesse subsistir sem uma resposta adequada, o Blé do Barril, irrompendo de um canto escuro da locanda, meteu o seu bedelho na erudita sabatina, com o manifesto desígnio de instalar solidez na tese da 'lágrima de sermão e chuva de trovoada', tese que constituía a lídima expressão de milenar sabedoria, transmitida, de boca a orelha, por gerações sem conta.
Assim, em implemento da pretensão, o Barril falou e disse: "Antes de amanhar a geringonça que é este mal amanhado Mundo, já Deus lia, na Sua sagrada cartilha, este celestial responso: 'não cries galinhas onde a raposa mora, nem creias em lágrimas de mulher que chora!' ".
Valério Bexiga, Histórias para boi dormir, Gente Singular editora, p. 103-104
Achei graça a este texto e à visão popular sobre o sermão do padre.
ResponderEliminarÉ interessante o trecho que colocou pois, o sermão pode ser eloquente e maravilhar, ou uma "choradeira" e ser mal apreciado.
Não conheço o escritor.
Saúde para os que têm eloquência e briham levando os outros a brilhar!
Fez-me lembrar "O Crime do padre Amaro" e a atmosfera queirosiana.
Obrigada.
O Dr. Valério Bexiga é um dos advogados mais antigos e ilustres do Algarve, profundo conhecedor da cultura e gentes do sul. Este livro de contos é notável. Se o encontrar por aí não hesite. A editora é esta:
ResponderEliminarhttp://gentesingular.pt/livros/56-historias-para-boi-dormir
Ainda bem que gostou! :-)
Muito obrigada! :)
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