Se Ester continuava a encontrar-se com Lu Si-Yuan, como antes, quem poderia assegurar? Talvez Zac, de zeloso. Ela própria assombrada de tão seguro sigilo. E imaginava-se dona de um mundo que nada tinha a ver com estes sitiados sítios. Um mundo que nem era o Bairro do Bazar nem o Jardim de Camões, tão-pouco a Concha-da-Tartaruga em Coloane. Um mundo que tinha, sim, a ver com a chuva, as tumultuosas torrentes do céu, o chão empoçado, ela a chapinhar de sapatos na mão. Trinidad frequentemente a interferir, a meter o bedelho, a porteira, o seu aviso: "Salir con tiempo tan feo?" Corria Ester escadaria abaixo, corria, não, voava, como se, em vez de chapéu-de-chuva, empunhasse um pára-quedas. Ocasiões em que o guarda chuva se virava na rua, tal as velas de um barco nas voltas do vento. Colhia então calmamente o velame, prosseguia à deriva, cabelos desatados, o rosto de quem se desbulhasse. Momentos mágicos, esses, não fosse aquele medo. Que o medo a gente acaba também por o adoptar. Gerado nas nossas entranhas, o medo é um fruto espontâneo e espúrio. Sem medo, seríamos certamente, se não insensíveis, pelo menos estéreis.
Ocasiões em que o carro do tenente passava por ela, a salpicava de lama, o rum-um-um do motor do dois cavalos mais furioso que o trovão. E Xiao Hé Huá, por onde andaria a essa hora o Botão de Lótus Amarelo? Saudades da chinesa, Ester. Saudades de quando atravessavam, juntas, o lago da cerca do colégio, a água pelos tornozelos, vermes como pequenas cobras ocultos no lodaçal: Cuidado, se esses bichos mordem o calcanhar, fica uma chaga crónica. Já na rua principal chamava um triciclo: 'Faiti !' Escuro dentro do triciclo, escuro e quente, um cheiro a bafio, o acoite da bátega na capota. E agora como uma fantástica viagem. Através de Macau. Para além de Macau. Uma vagabundagem ao longo dos seus sentidos, ao longo de si. A sua pena de não ter a quem contar tal aventura. Que o amor, as ocorrências do amor marcam-nas a confusão. E todavia, o caminho para lá, que claro! Igual à carta fechada na gaveta da mesa dos livros, o amor, os seus enigmáticos sinais, os seus símbolos selados, uma selva. Já o homem, ele que guardava consigo o encanto da clandestinidade, completo, o homem. Ninguém decerto compreendendo, caso ela contasse. Quem sabe, Xiao? Algum dia. Assim que tornassem a dormir as noites todas, a levantar-se uma aquando à outra, a cruzarem-se manhã cedo no corredor: 'Mor... o ... ning! Tsó shan!' E, ao dejejum, diante da tigela fumegante do 'chouk' com 'tau-fu': Tome do meu chá! 'It's refreshing!' Ou em noites de Inverno, a luz apagada, os seus murmúrios por trás da cana do compartimento. Então, sim, então havia de contar-lhe tudo (tudo?), mansamente e humilde. Contar para não vir a esquecer. Que a carta era sua, podia vê-la sempre que lhe apetecesse, tactear a finura do papel de arroz, o relevo dos traços a tinta-da-china, aspirar-lhe o aroma. Ele, contudo, o autor da carta... Tão raro, ele, tão remoto. Necessário fixá-lo para que não desbotasse com o tempo, não delisse como as imagens nos retratos antigos. Mas fixá-lo em quê? Em quem? Em Xiao Hé Huá, naturalmente. Xiao que, semelhante a ele, tinha olhos estreitos e faces esmaecidas. Semelhante a ele, descera ela das montanhas do Norte, Xiao, debruçara-se sobre os precipícios, ensanguentara os pés nas fráguas. Retê-lo em Xiao. Restituí-lo a Xiao?
Maria Ondina Braga, Nocturno em Macau, Caminho, p.168-169
Texto denso...talvez o cansaço não deixe descortinar o seu verdadeiro sentido.
ResponderEliminarO medo, os sinais, a carta que desbotava ao longo dos tempos...
Todo o texto me fez lembrar uma pintura chinesa em papel de arroz, com o preto contrastando no papel branco que amarelece ao longo do tempo, com a tinta a esvair-se, perdendo-se a escrita. As cartas estão a morrer...em vez de letras sobre papel surge a letra estereotipada no écran. O passado e o presente, a chuva oblíqua...dentro do Faiti, como numa barca tudo se perde até a realidade.
Desculpe a extensão do comentário.
O texto é triste.
Bom fim-de-semana. :)
Obrigado, Ana.
ResponderEliminarTenho ideia de já ter comentado uma vez que esta «Casa» é uma espécie de caixinha dos tesouros, onde as crianças guardam memórias que para terceiros não têm qualquer relevância. Esta será uma delas. É preciso ler o livro para entender, verdadeiramente, este excerto. Ainda assim, o essencial é como refere, a escrita da Maria Ondina faz lembrar uma pintura chinesa, cheia de nuvens, cores pálidas e espaços em branco...
Vou procurar o livro. Já em tempos o procurei por o ter lido aqui. Talvez o encontre numa biblioteca.
ResponderEliminarmuito obbrigada pelas suas palavras gentis.
:))