Os homens que haviam sido promovidos a Governo Provisório da República, uma inacreditável colecção de mediocridades glorificadas, representavam várias tendências dentro do PRP (Partido Republicano Português), tinham opiniões diferentes sobre o que devia ser o novo regime e nem sequer especialmente se estimavam. (...) Escolhidos mais pelo que os separava do que pelo que os unia, os ministros não tardaram a entrar em violento conflito. Pior ainda, mesmo nas questões mais essenciais, agiram independentemente, sem o consentimento geral e até sem consulta prévia. No entanto, em Outubro de 1910, todos concordaram na urgente necessidade de afirmar o poder do Estado contra a Carbonária. Machado Santos queria que a Sociedade continuasse activa como supremo guia das autoridades do Estado e do Partido. Conforme ingenuamente se dava ao trabalho de explicar, os carbonários não eram republicanos vulgares, eram «alguma coisa mais»: eram os «fundadores da República» e, nessa qualidade, achavam-se no direito e no dever de velar pelos ideais revolucionários. (...)
Ao princípio os notáveis do PRP pensaram em comprar Machado Santos e o resto da Alta venda com empregos, promoções, prestígio, se não mesmo com coisas menos subtis, como pensões vitalícias e dinheiro. Um ministro especialmente optimista chegou até a oferecer a Machado Santos o governo de Moçâmedes. Porém, nem ele nem a maioria dos chefes da Carbonária mostraram particular propensão para o suicídio político, e foi preciso descobrir métodos mais eficazes para os liquidar. Por sorte, só o Governo Provisório estava em posição de recompensar os militantes da CP e, como toda a gente que de perto ou de longe participara no movimento republicano, os carbonários queriam empregos. O frenesim colectivo era tal que as comissões paroquiais de Lisboa vieram pedir humildemente nos jornais aos bandos de pretendentes que, por favor, deixassem os senhores ministros trabalhar. Camacho, por exemplo, queixava-se amargamente das alcateias de aspirantes a funcionários públicos que o perseguiam pelas ruas. Nem no café, parece, o largavam. Ora, sem posição oficial, Machado Santos apenas podia transmitir os pedidos dos carbonários aos ministros competentes e juntar a sua voz ao coro geral dos suplicantes. O GP e o Directório perceberam imediatamente a oportunidade que isto lhes abria. Embora não negassem que os «heróis de Outubro» mereciam o prémio dos seus longos «serviços» e santos «sacrifícios», terminantemente se recusaram a aceitar as recomendações da Alta Venda como as únicas ou sequer as mais seguras credencias de «heroísmo». Assim, não tardou que Lisboa sofresse de inesperada invasão de hordas de «heróis». «Comissões revolucionárias» improvisadas, cujo papel na revolução fora pouco importante, obscuro, se não imaginário, começaram aplicadamente a passar certificados de «heroísmo». A imprensa publicava carta após carta atestando as proezas, a bravura e a dedicação de ilustres desconhecidos que exigiam e frequentemente recebiam provas palpáveis da gratidão da Pátria. O número dos que se declararam presentes na Rotunda na crítica manhã de 4 de Outubro cresceu com tanta rapidez que em Novembro já se dizia que, se essas abnegadas revelações não parassem depressa, ainda se acabaria por descobrir que Lisboa inteira lá estivera, excepto talvez Machado Santos.
Vasco Pulido Valente, O Poder e o Povo, Aletheia Editores, p. 206-208
Não li a "Utilidade do Poder I" mas fiquei com curiosidade.
ResponderEliminarNão gosto do poder porque corrompe!
Sempre tive dificuldade em compreender os jogos, as dissimulações, enfim, o teatro político.
Este é um texto cáustico, baseado nas verdades. Talvez seja por isso que não gosto de estudar este período político.
Em relação às mentalidades e cultura já tenho outra postura, gosto imenso e maravilham-me.
A arte é o refúgio, a única fuga possível para esquecer os homens quando são animais e não são seres humanos.
Política palavra que vem de polis podia ser uma ciência bela se o poder não fosse utilitário.
Desculpe este longo comentário.
Só deixo ainda isto: dança de cadeiras é o que é afinal a política.
Monarquia(com todas as suas facções)_República_Ditadura_Democracia... todas se gastam.
Bom dia!
Ao ler o texto, c.a., tudo me pareceu estranhamente familiar. E actual ou, pelo menos, do passado recente (cca. de 35 anos). Fatalmente (e digo-o com pesar), o destino genético dos Povos parece perpetuar-se ao longo da História, repetindo-se com nuances actualizadas. A Alemanha, por exemplo, a renascer, qual Fénix, das cinzas das Guerras. Portugal, a "não se governar, nem se deixar governar", como dizia Estrabão, dos Lusitanos. E, depois, a cunha, o compadrio, o prémio à mediocridade dos que não fazem ondas...Enfim!
ResponderEliminarO vídeo é um excelente documento. Mas notei que não havia pés-descalços, nas imagens (e se os havia, em 1910!...), como se toda a burguesia se tivesse "composto" para ir à missa ou ao teatro - curioso. No fundo, "é preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma", como dizia Lampedusa. Parece que só nos resta ser cépticos ou viver, muito efemeramente, breves períodos (1974) de fraterna solidariedade e liberdade, com a alegria dos nossos melhores ideais e sentimentos.
Seria escusado dizer que gostei imenso do seu poste, c.a..
Boa noite, Ana. Obrigada pelo seu comentário. Compreendo a sua falta de gosto por esta matéria. O Vaticano também não gostava das teorias de Galileu sobre a Universo e a Terra, «eppur si muove»... :-)
ResponderEliminarMuito obrigada, APS. Lembrei-me deste livro de Vasco Pulido Valente há uns dias, quando li, no Público, uma notícia relativa à aprovação do orçamento da CE (esta: http://www.publico.pt/Mundo/metade-dos-eurodeputados-portugueses-nao-abdica-de-viagens-em-executiva_1488826 ), a propósito deste excerto: «Lajos Bokros, um deputado conservador da Comissão de Orçamento, ironizou sobre aquilo a que se assistiu ontem na sessão plenária: "À luz da situação difícil em Portugal, é estranho ver um português supostamente conservador lutar por mais dinheiro e um português de esquerda lutar pela prudência fiscal".»
ResponderEliminarSó mesmo quem não conhece a História portuguesa pode ficar surpreendido com esta indistinção ideológica entre direita e esquerda, em Portugal. Na verdade todos os mais representativos partidos portugueses têm em comum esta característica, que se sobrepõe a qualquer outra: no fundo, o que todos almejam é ficar sentados «à mesa do Estado» e satisfazer as respectivas clientelas. Daí que tudo o que se tem vindo a escrever sobre a realidade política desde o séc XIX nos provoque esta estranha sensação de «dejá vu». Para mim (ao contrário de muita gente que se tem pronunciado sobre o assunto) o problema não está nos partidos, que se limitam a espelhar a realidade da sociedade portuguesa. O que é verdadeiramente trágico é que a maioria dos portugueses é como o Sérgio Godinho canta: http://youtu.be/9RHn7yfwuQk
Tem razão na sua observação relativamente à ausência de pés-descalços no filme. Não tinha reparado...
PS: Repito os 2 links que deixei no comentário anterior, para que seja mais fácil copiá-los:
ResponderEliminarhttp://www.publico.pt/Mundo/metade-dos-eurodeputados-portugueses-nao-abdica-de-viagens-em-executiva_1488826
http://youtu.be/9RHn7yfwuQk
c.a.,
ResponderEliminarDesculpe mas tenho que esclarecer um pormenor.
1 - O texto refere como muito bem utiliza: "clientelas", fenómeno intemporal como verificamos com a "praxis" política dos nossos dias.
Acrescento, a excelente frase de APS: "o destino genético dos Povos parece perpetuar-se ao longo da História". Gostei de ler este comentário.
2- É verdade não gosto de estudar este período por causa do clientalismo político, por causa dos ideais que motivaram e levaram ao derrube da monarquia terem sido gorados com os tais "clientalismos". Não sei se reparou que gosto muito do movimento artístico desse período, esse sim gostava de estudar em profundidade, claro que a política e a economia estão sempre patentes em qualquer estudo.
3- A atitude do Vaticano é a meu ver tão monstruosa como "as clientelas" que foca.
A Igreja, disse-me um padre Doutor do Seminário Maior de Coimbra, esteve sempre em crise contínua, com melhores e piores momentos.
Agora não vejo a relação entre este factor com a minha opção de não gostar de estudar a 1ª República. A questão de fundo é diferente, embora abarque o político.
4- Ainda bem que há quem goste de estudar a contemporaneidade, embora eu tenha a opinião, pode ser criticável, que a história do presente próximo presta-se mais ao estudo doutras disciplinas.
Peço desculpa por ter intervido e ter manifestado a minha opinião. Não o devia ter feito. Porém, como comecei tive que terminar.
Um amigo, embora ausente, disse-me uma vez: que menos de 100 anos é pouco tempo para avaliar as mudanças. a História de longa duração pode cair em menos erros. Tenho pensado nisso ao longo dos meus estudos mais recentes.
Bom dia!
Cara Ana,
ResponderEliminarPeço desculpa se não fui clara no meu anterior comentário. O que eu queria dizer é que podemos preferir ignorar certa realidade, que ela não muda só porque não gostamos dela. O exemplo que me vem à cabeça, sempre que penso nisso é o de Galileu, e por isso falei nele.
O mais que refere corresponde, efectivamente, a um gosto pessoal e, como é óbvio, julgo que cada um tem direito aos seus. Pela minha parte, nada a acrescentar, excepto desejar-lhe um bom dia também e, já agora, uma Santa Páscoa :-)
c.a.,
ResponderEliminarTem razão, a realidade não muda por a ignorar, aliás muitas vezes tenho que passar por ela.
Sou insensata e empolgo-me. Percebi o seu ponto de vista.
Venho agradecer e desejar também uma boa Páscoa!
:)