À prova de bala

Todos os escritores (artistas) são infelizes - leio de vez em quando, não sei onde. Mas afirmá-lo o próprio não será petulância? um modo de se dizer merecedor de compaixão? um modo de 'denegar' a sua grandeza? ou a convicção dela? Das muitas injúrias com que me vão medalhando, há duas que me intrigam - a de que sou um «vaidosão» e a de que sou um «invejoso». Porque se me revejo em comprazimento e subsequente vaidade, como posso ser invejoso? E se sou invejoso, como é que posso ser vaidosão? As duas coisas é que não. É portanto favor escolherem. (...) Retornemos à primeira frase - todos os escritores são infelizes. Porque é verdade. Mas se eu disser que sou infeliz é dizer-me com direito a queixar-me, como se não houvesse mais infelizes sobre a Terra e a supor implícita a afirmação de que sou «escritor». De modo que o melhor é não dizer nada ou sequer pensá-lo. Ou pensar que sou realmente infeliz e deixar de fora do pensamento qualquer outra conversa. Ou admitir que todo o artista é um desgraçado que se cumpre em encantamento nessa desgraça. Ou que se é feliz nos raros instantes em que se levanta por sobre a infelicidade que lhe coube. Mas não insisto porque corro o risco de me sair tudo ao contrário. E porque se não há-de ser simplesmente vaidoso do que se quer fazer, não tendo por isso inveja a ninguém que não queira fazer o mesmo, sentir-se todavia arrasado de sofrimento porque se não foi capaz, como é fácil verificá-lo ao rever-se o que se fez? Todo o artista é infeliz. Dando-lhe as voltas que se quiser, acaba talvez por estar certo

Vergílio Ferreira, Conta-corrente, nova série, vol IV, Bertrand Editora, p.179-180

6 comentários:

  1. Começando pelos Radiohead, uma banda que gosto muito, aprouve-me ouvir e ver tanta medusa. O bailado das medusas é muito belo. Este ano na praia houve uma invasão delas. Tinha que se olhar o mar e ver se nos afastávamos do seu circuito ou da sua dança. Sorri porque o sol e o mar revitalizam.

    O texto do Vergílio Ferreira é pertinente. Se o escolheu é porque o tocou. Nunca escolhemos nada ao acaso. Todo o artista seja pintor, bailarino, cientista, corredor, cantor, escritor,..., é vaidoso. Todos temos uma pontinha de vaidade. O que é preciso é ser elegante e para isso cito um pensamento de Paul Valéry:

    «Elegância é a arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado subtil de se deixar distinguir».

    Para ser elegante não é preciso ser-se rico, é preciso ser-se natural.
    Desculpe alongar-me mas gostei de reler este texto. E se julgou alguém ou se foi julgado, pense em Valery.
    Boa noite!

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  2. Ana, creio que os animais do vídeo são «caravelas portuguesas», provavelmente os bichos mais mortíferos à superfície da Terra. Belos e mortíferos. A associação que fiz entre texto/vídeo/canção foi por esta ordem de ideias. Nada de especialmente elaborado. Apenas isto.
    E contrariamente ao que me parece que inferiu, não uso os «postes» para fazer julgamentos nem, tão pouco, enviar mensagens criptadas, a quem quer que seja. Sou, por índole, frontal e directa (às vezes até demais, na opinião de algumas pessoas).
    No mais, ainda bem que gostou.

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  3. Felizmente nunca vi a «caravela portuguesa».
    As medusas são muito parecidas.
    Nunca pensei em mensagens criptadas mas em diferentes estados de alma. Achei graça!
    Sempre que leio um trecho que me toca, se intensifica em relação aos demais, como é o caso deste, associo, resplandeço e por aí fora.
    Bom dia!

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  4. Fico contente por saber que o texto a tocou, Ana. Curiosamente - e pelo que vejo agora - o que a tocou é, precisamente, o aspecto que menos me diz: a questão da vaidade e da inveja. Confesso-lhe até que omiti a citação de algumas frases relativas a esta matéria por me parecer que neste caso, contrariamente ao que é habitual, Vergílio Ferreira não foi longe (nem fundo) na análise.

    A ideia que retive do texto [a que me parece ser a mais interessante de todas] é esta: «todo o artista é um desgraçado que se cumpre em encantamento nessa desgraça».

    Cumprir-se, em encantamento, na desgraça. Independentemente da ideia poder, até, ser discutível, e de se poder concluir que não se concorda com ela, é inegável que poucos sabem verbalizar, com esta mestria, uma ideia complexa. Eis, para mim, o encanto do texto.

    E assim se prova que um mesmo texto varia em função dos leitores...
    Um bom dia para si, também e, já agora, uma boa semana!

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  5. Desculpe a persistência CA, mas não foi a inveja que me tocou [esse sentimento fica mesmo muito longe na minha observação] mas sim a vaidade e a infelicidade, julgo que a primeira serve para esconder a intranquilidade/infelicidade, o tal encantamento onde se cumpre a desgraça.

    Na profundidade da desgraça o encantamento excita o artista e num acesso de vitória ele sobe o cume da montanha em êxtase e cai numa nova e profunda agonia - desgraça.
    Espero não estar a ser incomodativa.
    Boa noite!

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