Não sei quem foi que disse que um diário equivale a um lento suicídio. Eu não estou a escrever um diário. Estou a passar para o papel recordações de tempos idos, ocasionalmente misturadas com impressões que vão surgindo. Sinto-me, no entanto, morrer aos poucos nestas linhas. O querer dizer o que se passa em nós, analisarmo-nos por escrito, ainda que a sós connosco, é devastador. Mas talvez eu já esteja mesmo morta. Quem fala é aquela parte de fora de mim sempre atenta à de dentro e a explorá-la, um atroz, um falso eu que tive de inventar para não desistir.
Maria Ondina Braga, Estátua de Sal, ed. refundida e ampliada, Círculo dos Leitores, p.81
Arvo Part, Spiegel im Spiegel; Pierart Natacha, coreografia e dança
e não estamos todos?
ResponderEliminaradorei a passagem
bjs
Não concordo nada com a primeira frase do texto de O.B., mas como conheço pessimamente a sua obra, também não integro as palavras no contexto.
ResponderEliminarLembro-me é dela, e de a ver a atravessar o Largo Camões (pela parte de cima), acompanhada por uma amiga(?), para seguir para a Rua do Loreto, onde a A.P.E. tinha, então, a sua sede. E onde ela ia tomar café e ficava algum tempo.
A companhia-música-balet, embora melancólica,é muito bonita,c.a..
Belíssimo, "belíssississimo" o diálogo entre o corpo e a música! O bailado é mesmo uma arte sublime!
ResponderEliminarA melancolia da música acompanha bem o texto. Devo dizer-lhe que este foi o primeiro livro que arranjei de Ondina Braga, após ter lido um excerto de outro na sua Casa.
A primeira passagem desta escritora no meu blog foi precisamente da "Estátua de Sal". Já li outros mas este é para mim especial.
Morre-se em cada dia que se acorda, uns dias morremos com mais intensidade, outros com menos, tudo depende da dor. A dor da alma é das piores!
Fiquei fã de Ondina Braga e coloquei-a a dialogar com outros escritores, mas cada um é um ser distinto do outro.
Todavia, quem deixa escrita - nunca morre!
Conheço mal a obra da autora e talvez também esteja, como refere APS, a «descontextualizar» o texto, C.a.. Mas penso que o esforço de introspecção, a análise de nós próprios, por escrito, a manutenção de um diário, fazemo-lo predominantemente na juventude, na fase de todas as inseguranças, sem nenhum pensamento na proximidade da morte – embora, às vezes, com algumas angústias suicidas inerentes à dita insegurança. Depois, com os anos, começamos a ganhar confiança, ou simplesmente estatuto, começamos a aceitar-nos demasiado facilmente e as introspecções começam a rarear. Claro que, entretanto, a morte se aproximou de nós, e estará inevitavelmente presente em qualquer introspecção que então façamos, ameaçando a nossa vida pensante de morbidez. Razão por que tais introspecções são altamente desaconselháveis a partir da maturidade e é tão saudável que se tornem realmente muito, muito raras… ;-)))))
ResponderEliminarGostei do bailado.
ResponderEliminar... a morrer? Sem dúvida, Cris. Um pouco, todos os dias... :-) Bjs
ResponderEliminarTem razão, APS. Tenho de reconhecer que este «post», para quem não conhece a obra da Maria Ondina, muito provavelmente é incompreensível. Talvez exigisse uma «introdução/apresentação», que não escrevi. Tentarei remediar agora, desvendando um pouco do que me fez chegar aqui.
ResponderEliminarComo acontece na maioria dos casos, tudo começou na música de Arvo Part: suave e melódica, um tom melancólico, entre o lamento e a canção de embalar. Depois, o título da música: «espelho dentro do espelho» (julgo que é a tradução correcta). E foi esta ideia que me fez dar o salto para este livro da Maria Ondina, e em particular para este excerto.
O «Estátua de Sal», classificado pelos entendidos como um «romance», é claramente autobiográfico, e foi publicado em 1969. Vinte e dois anos depois a Maria Ondina publicou o «Nocturno em Macau», este sim, assumidamente uma obra de ficção. Apesar de separados por 22 anos, apesar de um livro ser autobiográfico e o outro não, creio que ambos falam da mesma realidade (ou seja, ambos partem dos mesmos factos, relatados mais «a cru», no primeiro, e mais «vestidos», no segundo, no seguimento de muitas revisitações ). Porque a obra da Maria Ondina é assim: feita de observação, de luz e sombra, de jogo de espelhos. Na verdade, ela não descreve a realidade que viveu, pinta-a, uma e outra vez, nuns casos a traços largos, noutras com minúcia. E neste labor perde (perdeu) a sua vida. Escrevendo, matou a vida. Ou matou a vida escrevendo. Vai dar ao mesmo. Creio que foi literalmente assim que viveu.
Um dia destes (quando me sobrar algum tempo) hei-de tentar tirar isto a limpo. É um daqueles casos em que conhecer a vida do escritor talvez ajude a compreender a obra, tão ligadas elas estão.
Obrigado, Ana. Fico contente por saber que nesta «Casa» encontrou algo que contribuíu para o seu enriquecimento pessoal. Também acho que as ideias são a única forma de alcançar a verdadeira imortalidade, sobretudo quando nos enriquecem a todos.
ResponderEliminarConcordo consigo, Luísa, quando refere que é na juventude que, regra geral, se é tentado a manter um diário. Para as raparigas ( e tanto quanto recordo) até existe (existia?) um mercado de cadernos especialmente decorados, fechados a cadeado, a pensar nessa função. Julgo que o processo de crescimento, na adolescência, leva, necessariamente, a um diálogo com o «eu», que os diários veiculam/materializam/documentam.
ResponderEliminarJá não estou tão certo que, na idade adulta, os diários continuem a satisfazer uma necessidade de introspecção. Estou a pensar, por exemplo, em Vergílio Ferreira, que tem uns «arremedos» de diário, da juventude, e um mega-diário, da idade adulta (que ainda não li, mas quero muito ler). E há os casos de escritores que mantiveram diários toda a vida, como por ex. Torga (que li, na adolescência), Anais Nin (que também li, nos meus tempos de universidade) e Susan Sontag (que estou a ler). Para qualquer um deles, o diário tinha uma função que ia muito além do mero exercício de introspecção...
O caso da Maria Ondina parece-me ser um pouco especial. Embora não existam diários (tanto quanto sei) toda a obra está influenciada pela biografia (pelo menos é o que me parece). Depois, há o aspecto que acima refiro, em resposta ao comentário de APS, e para a qual, se me permite, remeto, para evitar repetições.
Não vem muito a propósito mas sempre aproveito para lhe dizer que gostei muito especialmente desta sua foto:
http://nocturno-la.blogspot.com/2010/09/dream-of-return.html
É belíssima! :-)
Acho que compreendo, MR :-)
ResponderEliminarEu gosto dos livros da Maria Ondina Braga. Ver a vida do mesmo modo é outra coisa.
ResponderEliminarGostei do que escreveu em resposta aos comentários do APS e da Luísa.
Obrigado, MR :-)
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