Protesto contra a lentidão das fontes

Malangatana Ngwenya Valente respigado aqui


Vazaram-se as luas da savana
ossadas pálidas emigraram
dos corpos para o chão
ajoelharam-se os bois
exaustos de carregarem o sol

Escureceram as horas
nomeadas pela fome
extinguiu-se o sangue da terra
esvaiu-se o leite
num coágulo de saudade

Restam troncos
sustendo gemidos
mães oblíquas sonhando migalhas
mendigando crenças
para salvar os filhos já quase terrestres

Quem protege estes meninos
feitos de chuva que não veio?
Que casa lhes havemos de dar?

Amanhã
quando se entornarem os cântaros do céu
as aves voltarão a roçar a lua
e as cigarras de novo espalharão seu canto

Mas dos meninos
talhados a golpes de poeira
quantos restarão
para saudar o amanhecer dos frutos?

Mia Couto, Raiz do Orvalho, in Nunca Mais é Sábado - Antologia de Poesia Moçambicana, org. e prefácio de Nelson Saute, D. Quixote, p.502-503

9 comentários:

  1. Li um livro de contos de Mia Couto e gostei mornamente. Na pele de poeta, criador de poemas, não conheço, este foi o primeiro que li.

    O poema liga muito bem com a tela que escolheu, não conhecia, aliás conheço poucos trabalhos de Malangatana.

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  2. E da mesma antologia, escolho este

    CAFÉ FRIO

    Com ninguém reparto meus sentimentos
    Nas cacimbentas manhãs de Inverno
    egocêntrico vou ingerindo
    meu melancólico
    café frio.

    José Craveirinha
    (um poeta da minha preferência, assim como gosto da pintura de Malangatana)

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  3. Para Ana:
    Conheço melhor a prosa que a poesia. Prefiro a prosa. Gosto particularmente da «Chuva Pasmada» e das «Estórias Abensonhadas», este último um livro de contos. Gosto de ler a minha língua e descobrir outra língua, à semelhança do que me aconteceu quando estive em Moçambique, isto é, há uma sensação de familiaridade no meio de um universo totalmente diferente.
    Também me pareceu que o quadro «casava» bem com o poema. Julgo que têm a mesma «cor».
    Obrigado :-)

    Para MR:
    Também gosto desse poema do José Craveirinha, cuja obra conheço muito mal. Não o associo ao quadro do Malangatana, parece-me que quadro e poema têm «cores» muito diferentes. Julgo que para este poema seria necessário um quadro em tons azul, com algum cinzento, ou seja cores que dificilmente encontramos num quadro do Malangatana. Estarei enganado?

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  4. Esteve em Moçambique?
    É um destino que quero fazer depois de umas lutas. Moçambique sempre me atraiu... apesar da pobreza.
    De Malangatana vi uma vez uma exposição e o meu conhecimento reporta-se a isso.
    De Mia Couto li "Contos do Nascer da Terra" e fiquei por aí.
    Achei graça ao título do seu post e esqueci-me de o referir. :)

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  5. Estive em Moçambique, sim, em 2005, pouco mais de uma semana. É um lugar mágico. Hei-de lá voltar.
    O título não é meu, é do Mia, mas fico grato pela atenção amiga :-)

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  6. c.a., claro que o poema que transcrevi do Craveirinha não cola com o Malangatana que pôs. Sim acho que uns tons de preto e cinza ou de castanho têm mais a ver com a sua atmosfera.
    Apenas fui à mesma antologia escolher algo de diferente e como gosto muito do Craveirinha...

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  7. E fez muito bem, MR! Peço desculpa se a forma como escrevi lhe deu uma ideia diferente. Aliás, fiquei com vontade de ler mais e a si o devo. Gosto muito desta antologia. Voltarei a ela, com certeza. Grato pela chamada de atenção.
    A pergunta sobre o Malangatana deve-se a pura ignorância, ao facto de me ter dito que gostava deste pintor, e por ter notado que conhece o tema. Julgo que Malangatana usa pouco os azuis, todas as telas de que me lembro são em tons relacionados com a terra, e não com o mar. Estou enganado?

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  8. Gosto bastante do Malangatana e acho que tem razão em relação às cores predominantes nas suas telas. Também as associo mais a África.
    E acho que teve toda a razão em chamar a atenção para o facto do Malangatana não jogar com o poema do Craveirinha.
    É sempre com prazer que venho à sua casa improvável.

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