«Vi-a pela última vez, oh! há já tanto tempo! estava eu a banhos em Santo Amaro. Porém, desses banhos sujos e pobres nem vale a pena falar. Apetece-me, sim, recompor a minha conversa com a Maria. Não digo que tintim por tintim mas, enfim, recompô-la.
A Maria levava um menino, o seu menino ao colo.
Maria, Maria, quem te viu e quem te vê... pensei, mas sem lho dizer.
Era uma tarde quase morta e os lugares tristes e feios, pesados; não como estes do lado de cá, dobrado São Tiago. Povos miseráveis, do fim do mundo, currais humanos e cerros agrestes, onde os vilões ricos vão caçar no tempo.
Maria!
Admiro-me de a encontrar, mas porquê, se ela daqui é, se estou à vista do seu povo?
Não te esperava, lhe digo.
De menino ao colo, meio dormente, ela sorri-me. Mas com que beiços e com que olhos? Oh! nanja com os seus antigos. Onde irão bem eles e os seus perdidos jeitos?
Que fazes, rapariga? Deixei de te ver...
Não tornei lá, nada não...
Então?
Agora guardo um velho, sabe a senhora, fico de vela a ele, e toda a noite, ergo-o e deito-o por mor de... a senhora bem me entende, como já não tenho que perder...
E o teu menino?
Muito 'costipadinho'! Passa a noite comigo, enrolado nuns farrapos. Eu não me deito.
E o pai dele?
Ó!
A Maria vira a cara, retraída, repetindo-me: ó! ó!
Porém o narizinho curvo da criança, como um biquinho de papagaio, é perfeitamente o do lojista seu pai. Que o repudia, necessariamente. Ele, a mulher e os irmãos e cunhadas de cada um dos lados.
A Maria é de quem na quis e de quem na quer! declarava em baixo duro a senhora Teresinha, sua patroa, P!... De noite recebia o meu na cama, dijem, e de dia, e de dia? quem no sabe, lá por onde ela andava?
E a Maria, ali parada na minha frente, desluzida como a própria hora em que a surpreendo, naquela passagem escura e afogada de uma canadita da serra, pedregosa, húmida, está esperando a minha esmola... Ah! Maria, Maria, quem te viu e quem te vê!
O seu menino triste, muito entrapado, mas com o biquinho de papagaio visível, só me lembra o pai.
Estás marcado, penso. Mas não lhe quero mal, porque lhe havia eu de querer mal? Por mais que te reneguem estás marcado! E o lojista seu pai aparece-me. Pesadão, barrigudo, de coses caídos, de alpergatas desatadas, de olhar baço, sem freguesia, encostado ao balcão sobre um tapete de papéis, trapos e fiapos de lã churra. Pai daquele anjinho pária... desfrutador daquela mulher que foi uma aurora... depressa apagada pelo desprezo de todos e pela fome.
Ele não te dá nada? pergunto-lhe.
Ó! fui-me lá a chorar, pró quê? atiraram-me c'uma manta velha e más palavras, e que se eu tornasse...
Chamavam a guarda?
É como diz.
Adeus, Maria, adeus.
Que sítios, que pobreza e que aridez! Fragas, mato, rijos giestais... São Tiago à vista, altaneiro, e por trás dele, serra dentro, os grandes maninhos e os baldios despovoados, às corcovas, imensos, onde os rios nascem e uivam os lobos...
Em que buraco se há-de meter o coração de quem tudo isto vê? Um panorama aflitivo e augusto, esmagador, e uma miséria rasteira.
O menino morre e a mãe dele, mirrada, já feia, é uma candeia a apagar-se também.
E estaria escrito, porque tudo assim aconteceu. Foi-se o seu menino, mais um anjinho para o céu, sem que ninguém quase disso desse fé, e após ele a mãe: um alívio para a terra.
Ó serra impiedosa!
A Maria ia à Guarda, uma lonjura, talvez esmolar. De menino sobraçado. E também fazer um pneumotórax. Um pneumotórax!
As cidades, até mesmo as serrenhas, têm os seus luxos e contemplações com os pobres que apanham a tuberculose.»
Confesso que não gostei do texto. O que é que viu nele?
ResponderEliminarSão histórias de Lisboa?
ResponderEliminarA mulher lembra-me uma «ratinha» (era assim que no Sul chamavam às gentes do Norte) que conheci, era eu criança e ela ainda muito jovem, muito loura e roliça, bonitinha, olhar malandro, um pouco sonsa. Encontrei-a muitos anos depois, irreconhecível.
ResponderEliminarO que vejo? Vejo rigor, um rigor fotográfico na descrição da pessoa e do ambiente. O estilo talvez seja um pouco melodramático, e por isso o texto «soa» datado, mas ainda assim parece-me extraordinário, ao nível da técnica de escrita. A meu ver há por aí muito jornalista que devia ler Irene Lisboa para aprender a fazer crónica...
O «Solidão» foi definido pela própria Irene como sendo «notas pelo punho de uma mulher», no fundo são apontamentos que, diariamente, ia fazendo, com observações e reflexões. Este apontamento ocorre durante uma estadia na serra, suponho que na zona de Arruda dos Vinhos, zona onde nasceu, em 1892.
A fotografia é, de facto, de Lisboa, é um retrato das varinas que vendiam peixe pelas ruas.
Compreendo que não tenha gostado. Eu levei tempo a «entrar» nesta escrita, mas agora tomei-lhe o gosto... :-)
Há uma louça destes ratinhos que iam para o Alentejo, sazonalmente, e que é apreciada por algumas pessoas. Agora só se vêem nos antiquários.
ResponderEliminarQuanto ao texto compreendo o que quer dizer... mas custa-me entrar nele. Talvez um dia eu consiga.
A fotografia é fantástica!:)
Solidão", de Irene Lisboa, tem tempos próprios para se ler. Os "capricórnios" têm sempre cargas pesadas com eles e, as nossas, às vezes, são demasiado leves.
ResponderEliminarO "ó" de Maria levou-me até à minha Maria tutelar. Embora nunca tenha conhecido o seu "lojista", conheci-lhe o filho, e ela é para mim uma memória profunda e grata até 1975.
O resto na minha realidade, felizmente, é diferente do texto de I. L.
P.S.:e num registo diferente: não consigo chegar ao seu email, pelos dados que me deu no "Quevedo". Help!
É exactamente como refere, este livro tem um tempo próprio para se ler. Aliás, não acontecerá com todos? E a não ser assim, envelhecer perdia todo o interesse...
ResponderEliminarAqui fica o «help»:
o.contador.androgino@gmail.com
:-)