Dino Valls [ mutus liber ] 1996, respigado aqui
«Tudo parecia ali feio e insuportável, a revolta contra o que tinha de ser já nem ânimo lhe dava ou força como outrora quando era diferente e tinha orgulho, ímpar e vaidoso. Pelo reflexo na janela devolvia-se-lhe a imagem.
Evitou olhar-se. Três horas ainda pela frente, a encurtar intervalos, naquela noite de calor sentiu a presença fixa, rendida ao apelo de si, de uns olhos profundos em que se concentravam todos os sentimentos, sorrisos e promessas. Uma aluna.
Na pausa para um breve café, indiferente à acumulação de colegas no estreito corredor, uma maquineta de café em copos de plástico e um fingimento de colheres, aqueles olhos incendiados procuraram-no, mais a voz, ligeiramente baixa, quase a segredar-lhe: "parece cansado, professor, e triste". Não , ele não estava cansado, nem triste, sim um pouco cansado, talvez, muito cansado mesmo "esta época do ano, sabe, esgota" e ela sabia, "andamos todos tristes", a precisar de férias, felizmente "está quase, são só mais duas semanas, com licença então, até já".
Virou costas no momento exacto em que lhe subia, vindo do seu íntimo, a ânsia de a olhar, perdendo-se, afogado de desolação, nos braços daquela voz.
Não lhe dissera sequer "obrigado pela preocupação" ou coisa parecida, que se diz assim, nem ao menos uma palavra que, por ambígua, desse uma esperança de que estava realmente triste, uma tristeza irremediável, daquelas que se querem dizer a alguém, de preferência a um anónimo que não retorne, que não a use como razão para ficar e que se não diz a uma mulher porque há o risco de desencadear amor.
É que ela não era a longínqua anónima que pode ser a fácil confidente, segura, cujos sentimentos se não despertam nem potenciam. Sem o conceber com a clareza com que o fenómeno já se desenhava, sintomas todos alinhados, ele receava-a. Temia que o sentimento que se lhe desprendera e de que se ia apercebendo fizesse nascer a situação que não saberia como gerir. O desejo era, porém, iniludível. Uma brisa de fantasia, asa roçagante, passou, breve, retemperadora, a afagá-lo. Quando ela se sentou de novo no seu lugar, escolar, eficiente na pose, o caderno entreaberto, o ar ligeiramente distante, como se nada tivesse sucedido, imaginava-lhe já a nudez pudicamente restringida ao menos íntimo.
Fecha-se os olhos para se ver melhor o mundo desejado. Em frente a si estava o objecto do desejo. Ao abri-los tinha a realidade. Encerrou-os por um segundo. Não suportou alhear-se. Doía demais. Notou-lhe a extensa nuca, o corpo longilíneo. Naquela noite as aulas pareceram-lhe um mal possível. Impossível continuar aluna.»
Resisti mais ao texto do que à imagem - digo isto sem ironia. O quadro(?) tem algo de perverso. O texto, algo de naïf.
ResponderEliminarDepois andei à procura de Dino Valls (1959,espanhol, formação médica). Falam também em algum sadismo nas imagens. Confesso que não digeri, inteiramente, o seu post.Mas,pelo menos,acho-o muito curioso.
Do texto não me pronuncio.
ResponderEliminarDa pintura, devo dizer que gostei, especialmente, do olhar meio assustado da retratada, da mão que aponta para o labirinto, da estante de livros e da escolha do pintor ao retratá-la junto a um canto da sala.
A tela é enigmática... Acho-a bela...
O labirinto se for o do Minotauro, ela poderá ser a princesa Ariadne, assustada pelo destino/confronto do seu amado Teseu...
Se o mundo dos livros é um labirinto e um caminho infindável...não compreendo.
Se o labirinto representa o amor, também não tenho palavras. Por isso é que o quadro é belo.
O que me atraíu no quadro foi o olhar e, depois, o labirinto, no chão. Fazendo zoom constatei que há frases escritas nas costas da rapariga e um livro, na estante, com o título «Mutus Liber». Fui à procura no Google e descobri que é o título de um misterioso livro francês, do século XVII, o «livro mudo», sobre alquimia.
ResponderEliminarA associação ao texto é mais difícil de explicar, mas através do que acima refiro sobre o quadro (julgo que será um quadro), talvez fique mais evidente. Ou talvez não, na medida em que eu li o livro, e no meu imaginário esta imagem é uma boa aproximação visual à relação entre aquele professor e aquela aluna.
É curioso o facto de ter visto alguma perversidade no quadro. Não me ocorreu tal. Eu vi apenas uma mulher simultâneamente ousada e esquiva, desafiadora.
Muito obrigado por me transmitir a sua percepção. Gosto muito quando me fazem pensar.
Obrigado, Ana. Acho que a minha sensibilidade também foi mais por aí...
ResponderEliminarO título do livro do século XVII, o «livro mudo»,atrai-me. Comprei da Taschen há uns dois ou três anos um livro sobre arte e alquimia mas ainda não o disfruto com o prazer da compreensão.
ResponderEliminarAlquimia não sei se é como a fé, algo inexplicável. O eterno elixir não sei se existe. Ando agora a tentar ler umas coisas sobre mistérios dessa natureza... o meu racionalismo atraiçoa-me.
Esqueci-me de dizer que observei de novo o quadro e pareceu-me "desafiadora", como diz, mas ao mesmo tempo assustada "esquiva"/fugidia...
ResponderEliminarNão a tinha visto como desafiadora, boa observação a sua e desse modo condiz com o texto. A história é trivial...
tentei mandar um comentário mas "fugiu".
ResponderEliminarPintura interessante, não conhecia esse pintor. Vou ver...
História trivial, claro, porque da fragilidade humana, atracção/desafio/fuga/atracção, etc,etc, mas sempre única...
«Fugiu»? É, às vezes os malandros fazem isso... :-)))
ResponderEliminarObrigado, MJFalcão. Como acima refiro, li este livro. Já tinha lido os «Contos do Desaforo». Gosto da escrita do JAB. Talvez, numa perspectiva literária, os contos sejam melhores, mais perfeitos, mas eu sou apenas um leitor... Posso apenas dizer que li o livro, com prazer, até ao fim. Já li livros melhores, é verdade, mas também já comecei a ler muitos outros que pus de lado e nunca acabei. Não foi o caso deste. É um livro honesto. Aprecio isso. A história não será excepcional, mas está muito bem escrito.
ResponderEliminarJá conhecia Dino Valls, é de deixar a respiração suspensa. Aliás, essa tela está no «silêncio dos livros» por minha mão. Veja-se o restante trabalho do pintor em www.dinovalls.com
ResponderEliminarRespire-se fundo, primeiro...
:)
Fui espreitar agora e de facto é preciso respirar fundo primeiro... Compreendo agora melhor a observação acima, de APS.
ResponderEliminarAinda assim, há qualquer coisa nas imagens que me faz reagir (ainda não percebi bem o quê) e este, então, prendeu-me logo assim que o vi. Pelos vistos somos dois... :-)
Obrigado, meu Caro.