Como quem se deslocasse pelo tacto nas trevas

«Nessa noite, após a retirada de Rosa Mística, a dor de novo a atacá-la, Ester, e agora sem tréguas. Já no entanto não lhe restava nenhuma dúvida. Que, com ela, os sentimentos, uma coisa lenta sempre, os sentimentos, lenta e labiríntica. Como quem se deslocasse pelo tacto nas trevas. Como quem caminhasse às cegas?
Sentada com a luz apagada e mergulhada em meditação, sentia-se subitamente exaltada, Ester, tal se tivesse febre. Uma exaltação que lhe vinha do facto de a mestra-dos-estudos, nesse passo, estar ainda mais cega que ela. Quem diria? Rosa que se gabava de ler nos olhos das criaturas. Perversidade da minha parte, estou a ser perversa... Vingança. É isso. Estou a vingar-me da mestra. A vingar-me de Macau? A nossa professora consta que vai casar com um oficial, a nossa professora! tresouvira certo dia a uma aluna. E Gandhora: Você sai com militares à noite, é? Extraviado o sono, a professora-de-inglês ora se deitava ora se sentava na cama. As desconfianças de Rosa quanto a Mr.Hó. E Mr. Hó afinal... Os seus chás com o chinês rico nada mais que um disfarce, um despiste. E tudo por mera casualidade. Pois, com ela, sentimentos e acções igualmente, tudo sem nenhum pé, sem nenhuma previsão. O contrário do que se dava com a vizinha de quarto, Xiao toda propósitos, toda proporções. Assim, porque a professora chinesa, semana sim semana não, ia visitar o padrinho a Hong Kong, o colégio inteiro ciente de que era o padrinho e que devia ser visitado. Xiao Hé Huá e a sua aura de coerência e de equilíbrio. A sua pura personalidade chinesa: confuciana? Os chineses acreditando que àquilo que inevitavelmente tinha de ser correspondia outro aquilo. Assim sobre um bom repasto um solene arrotar, e nos dia de jejum borboletas no estômago. Ela, no entanto, Ester... À toa, ando por aqui à toa, ando ao deus-dará. Deus? Mas teria Deus algum cabimento nesses embuços, nesses embustes? Deus era a paz e a paz jamais provinha de perfídias. Senhor, o que eu não daria para receber a paz! Graças dessas, contudo, exigiam renúncia. Mais que renúncia, destemor. Eu amanhã a sair à rua sem nenhuma reserva. A desafiar Macau, amanhã. Aceitando-me, eu, reconhecendo-me, em Macau. Amanhã...»


5 comentários:

  1. Já deu para ver que é um grande fã de Maria Ondina Braga e de Irene Lisboa. Eu gostei de ler a Maria Ondina Braga e gosto imenso da Irene Lisboa.

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  2. São ambas «descobertas» relativamente recentes. Acontece que sempre que gosto de um autor, tenho por hábito tentar conhecer toda a obra e por isso posso dar a ideia que não leio mais nada. Presentemente tem sido a Maria Ondina Braga e a Irene Lisboa, à mistura com algum Camus e, antes dele, Vergílio Ferreira e Clarice Lispector. Infelizmente, tenho de trabalhar e por isso não consigo ler tanto como gostaria e há tanto por ler...
    Obrigado, MR. Ainda bem que gostou. O filme é contemporâneo da acção do livro (anos sessenta do séc. passado). Prendeu-me a atenção porque através dele conseguimos ter uma ideia de como era o Macau do livro. É muito interessante.

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  3. Neste momento não posso ver o trailer mas do texto gostei.
    Também tenho o problema do trabalho não me permitir ler o que gostaria de ler.:)

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  4. Eu também sou (era) assim. Quando gostava de um autor, ia todo de enfiada. Li alguns livros da Maria Ondina Braga; da Irene Lisboa li alguma coisa em pequena e não me convenceu. Há alguns anos tive de lhe pegar e então adorei - foi uma descoberta. E lá foi de enfiada. Há autores que não devemos ler muito jovens. Ainda há pouco se falou sobre o Graham Greene.

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  5. Em relação à leitura também sou obsessiva, isto é quando gosto de um autor leio tudo o que encontro. Lembro-me que há muitos anos li Irene Lisboa mas textos soltos. Nunca consegui ler um livro de seguida. Hoje, por causa dos trechos que tenho lido ando a ler Solidão... e estou a gostar!
    MR, é verdade há livros que só despertam a nossa atenção mais tarde. Li Graham Greene há uns anos não sei o que veria neles agora.:)

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